Jaume Ciurana e Joaquim Forn |
Na Catalunha, nove pessoas - entre parlamentares, políticos e líderes de destaque na luta pela democracia - estão presos por ordem do governo espanhol, após a Catalunha ter realizado um referendo popular que decidiu pela independência do país. Outros estão exilados, entre os quais o presidente eleito, Carles Puigdemont.
"Cartas pela Liberdade" é um espaço aberto pelo diário digital Vilaweb para "expressar solidariedade aos presos políticos e exilados - e, ao mesmo tempo, para que se saiba quem são eles", segundo o diário.
Resolvi traduzir essas cartas neste meu espaço, que andava um tanto esquecido ultimamente, e compartilhar as traduções no Facebook.
Por que decidi fazer isto? Por causa de uma palavra: ideal. Ter ideais é não só importante como sagrado na vida de alguém. E as pessoas que vocês conhecerão aqui são idealistas, não ideólogas. Acreditam no serviço ao próximo, acreditam num país que há décadas não os deixam construir, entre tantas guerras e imposições.
Se ideal é o que falta no mundo, vamos nos espelhar nessa gente e em sua grandeza para construirmos, cada um a seu modo, uma forma melhor de se viver neste planeta.
I. Carta de Jaume Ciurana a Joaquin Forn
"É preciso combater, com vontade, a 'aparência de normalidade' que te querem impor os teus carcereiros"
Jaume Ciurana e Joaquim Forn nas montanhas, na juventude
Benvindo,
Quim!
Hoje de
manhã, no alto de Collserola, pensei em ti mais uma vez. Aliás, tenho feito
isso com frequência, talvez para lembrar a mim mesmo a obrigação moral,
emocional, racional e política de não esquecer a injustiça que vem sofrendo. Os
dias passam, a vida continua, o sol surge a cada manhã – e é preciso combater,
com vontade, a ‘aparência de normalidade’ que te querem impor teus carcereiros e
aqueles que, com seu silêncio vergonhoso, te condenam. Hoje, um dia de
visibilidade excepcional – pelo menos na hora em que aqui estive – pude enxergar,
bem ao norte, os Pireneus bastante nevados, com o majestoso Monte Puigmal. E
pouco depois, olhando mais para o levante, a silhueta - mais difusa - da Serra
de Tramontana, em Maiorca. Num só golpe de visão, avistei os cumes dos Pireneus
e seus contrafortes, seu amado maciço de Montseny, Monserrat, a planície de
Vallès, as colinas de Maresme, o plano de Barcelona, o Mediterrâneo e Maiorca.
É neste
preciso momento, diante de horizontes amplos e do ar limpo e transparente, que
penso em ti. O país inteiro, tão perto e tão longe. Assim como tu. Nunca, como
agora, estiveste tão perto das pessoas que te estimam – e tão longe,
fisicamente, da Laura, da Anna, da Beta e da tua mãe, de todos nós. Não sei se
tens consciência disto, mas penetraste nos lares e nos corações de milhares de
catalães. Queriam te ver longe dos teus e conseguiram exatamente o contrário: a
cada vez os teus são mais numerosos, a cada vez eles te sentem mais próximo e
estabelecem contigo aqueles laços invisíveis que unem as pessoas por toda uma
vida. Como daquela vez, já faz mais de 30 anos, que resolvemos escalar o
Montblanc. Lembra? Estávamos amarrados com cordas, o dia também era limpo e
claro, mas o frio e o vento nos fizeram recuar na aresta final e nos impediram
de chegar ao cimo. Confiamos a vida um ao outro e esse gesto consolidou nossa
amizade.
Uma
amizade forjada nos anos da universidade, quando organizamos a Fundação
Nacional dos Estudantes da Catalunha (FNEC), da qual você foi presidente, e
também na Juventude Nacionalista da Catalunha, que existe até hoje e sempre
teve, como eixos condutores, as paixões que compartilhamos: a Catalunha,
Barcelona e as montanhas. Tuas profundas convicções cristãs te levaram a tomar
o caminho da objeção de consciência, ainda que incerto naquela época. É que sempre
foste foi um homem tranquilo. E mais importante que isto, um homem que
transmite tranquilidade, que emana serenidade. É por isso que me indigno e me
rebelo – aí sim – quando vejo gente que não te conhece nem um pouco te
qualificar como uma pessoa violenta! De todas as mentiras que tenho ouvido nos
últimos anos, esta é, talvez, a que me faz mais mal.
Mas
não quero que sofras com isso. Não me deixarei vencer pela raiva; seria o mesmo
que me deixar vencer pela mediocridade daqueles que te prenderam. E não o farei
tampouco porque sei que tu os perdoarás, se é que já não o fizeste. Mas há
outra coisa que me dói particularmente: o silêncio de alguns que foram nossos
companheiros, teus e meus, durante muitos anos, na Câmara Municipal de
Barcelona. Gente que, apesar de pensar diferente, em algum momento nos pareceu
que se encontravam naquela faixa – às vezes mais larga, às vezes mais estreita –
entre o simples conhecimento e a amizade.
Alguém
poderia dizer que a vida é um conjunto de alegrias e decepções, e que a
felicidade consiste em ampliar as primeiras e esquecer as demais. É o que a
gente tenta fazer a cada dia. Essas pessoas não conseguirão fazer com que as
sementes de ódio que espalham germinem em nossos corações. Este será o maior de
seus fracassos.
Mesmo
acostumados ao imediatismo, aos 140 caracteres, o simples ato de escrever
cartas nos permite um momento a mais de pausa, de reflexão. E no caso desta, que
tem a vocação de se tornar pública, temos também a oportunidade de explicitar
coisas que, normalmente, não escreveríamos. É por isso que tenho necessidade de
te agradecer pelas muitas coisas que compartilhamos, especialmente pelos anos
vividos na Câmara Municipal, pela oposição ao governo. E por sua passagem –
efêmera, mas que deixou marcas – pelo Governo da Catalunha, como Conselheiro do
Interior. Sobretudo no momento em que você liderou a resposta da cidadania a um
dos maiores e mais trágicos embates que nossa cidade já viveu: o período em que
Barcelona era assombrada pela dor e pelo horror dos atentados. Sua serenidade e
confiança no trabalho dos agentes policiais, comandados pelo Major Trapero, renovaram
nossas esperanças, nos reconciliaram com a condição humana.
Toda vez que vou te
ver, ou que pergunto como você está às pessoas te visitam na prisão, a resposta
é sempre a mesma: está bem, forte, com coragem. Mas agora chega! Não perguntarei
mais isso a ninguém, e não quero que ninguém mais me pergunte, até que a
resposta para “como estás” não possa ser outra senão LIVRE.
Um grande abraço
Jaume
P.S.:
Você pode se orgulhar da Laura e das suas filhas. O amor, a fortaleza e a
dignidade com que vêm vivendo esta situação são simplesmente admiráveis.
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