sábado, abril 26, 2008

Lluís Llach


Olho para ele com o coração parado, fotografado no tempo mas ainda batendo em cada momento passado de insuspeita coragem, medo, dor, tristeza, vontade, revolta, mãos dadas pelas Diretas Já, pânico, raiva, alívio ou felicidade.

O seu rosto está no vídeo, olhos firmes através dos quais algumas eras desfilam. Eras de incertezas e desafios, como um filme dentro do outro. Há vidas inteiras em cada pequena ruga perto desses olhos. Anda mansamente, como se estivesse na rua de qualquer cidade. Como alguém do povo, que recebe e rebate os golpes com aquela temperança típica de quem conhece bem o peso do que vem e do que vai.

Lluís Llach me chegou assim, como que do nada, mas dizendo muito. Começou por dizer que nunca é tarde. Sim, nunca é tarde para a gente se reconectar com a natureza desassombrada típica do nosso coração de estudante, que mora dentro de todos que já passaram, como protagonistas ou nem tanto, por alguma forma de opressão. Em seus olhos de guerra e paz, revejo minha família na sala de jantar da casa de minha avó, a velha televisão de válvula ligada, a acompanhar em preto e branco os passos de ordem-unida do golpe militar de 1964. Meu pai a andar de um lado para o outro, os rostos traçados de angústia. Revejo os pronunciamentos presidenciais, a grade de silêncio, o luto pelos líderes caçados. Revejo o AI-5, quatro anos depois, e o terror da era Médici. E o silêncio tão bem retratado por Ivans Lins e Vitor Martins, na canção “Aos nossos filhos”. E os nossos trabalhos de faculdade, representados com brilhos desafiadores para uma classe ávida e fervilhante de crenças, todas elas contra o mal personificado no aparelho repressivo – que, nos anos da suposta democracia, nunca conquistada mas outorgada, foi sendo substituído por um vazio interminável, que torna o gosto pela liberdade inacessível aos nossos filhos, impossível de expressar para crianças construídas na era do consumo e da irrelevância.

Está diante de mim com sua veemência, seu aguerrido fervor, sua música irrepreensível, seja no clamor ou no romance, no réquiem ou no êxtase. Lluís Llach é uma ponte, sim – uma ponte entre a fé original que carrego e a sensaboria dos dias que escondem inimigos de enorme e cotidiana perversidade, que anestesiam, corroem e diluem aquele sentido tão palpável que eu conhecia muito bem, o sentido de resistir, ainda que com mudas palavras e pouco alarde. Não ouvir Roberto Carlos, não comprar O GLOBO, suspeitar sempre da América, ler Eduardo Galeano, ouvir Mercedes Sosa, escutar respeitosamente os discursos de Fidel Castro, amar Chico Buarque sobre quase todas as coisas, praticamente ajoelhar-se diante de Guernica...

O mais bonito é que não há a menor possibilidade de vê-lo como um romântico estandarte do passado. Llach é uma força da natureza humana, presente como um sinal de fumaça nos céus de sempre. Ele incorpora as renovações sadias da crença e da fé, da coerência, do ato de ser verdadeiro consigo mesmo e com suas convicções. Diante de sua grandeza fico estarrecida, mas nem penso em lamentar não tê-lo conhecido antes, não ter acompanhado sua vida, sua luta, suas canções ao longo dos anos. Antes agradeço porque não é tarde, nunca é tarde para atravessar, com a maior vontade, o espelho daqueles olhos que me confirmam a capacidade de reconstruir a força, rever os parâmetros da luta, acreditar que o que está guardado em mim pode mudar o mundo ainda que em pequena medida, como nos tempos em que, mudamente, resistíamos contra a ditadura enorme. Hoje há outras, diárias e aparentemente mínimas, quase sem valor, mas que merecem uma boa, cotidiana e paciente dose de resistência. E Llach me mostra isso sem qualquer conotação salvadora ou redentora, mas como gente normal, gente igual, gente que, dentro de um calmo silêncio, guarda um vulcão na alma.

Olho para ele com enorme respeito. Escuto suas canções com profunda paixão e um prazer estético sem tamanho, as que fazem sonhar, as que fazem pensar, as que fazem acordar.

Llach é a beleza original de um coração limpo, que nos revigora contra o conformismo, ao mesmo tempo que nos protege a ternura. Cada vez que repito as estrofes das canções nessa sua língua que canta sozinha, e que me esforço por compreender, sinto-me de novo parte de alguma coisa que nunca pode morrer, e que essencialmente não ficou para trás, porque, afinal, malgrat la boira, cal caminar*.



* Apesar da névoa, é preciso caminhar (da letra de Que tinguem sort, de Lluís Llach)

segunda-feira, abril 21, 2008

Talvez seja cedo...



... para falar de dores e filhos, filhos dos outros, mas ainda assim filhos, crianças que nascem, florescem e morrem, vítimas da insanidade e da estupidez. Talvez seja cedo - ou quem sabe tarde? Talvez a hora seja incerta para qualquer tentativa de pensar as feridas de mães que perdem suas crianças para a violência do mundo, do medo, da alma. Ou talvez seja tarde para lamentar, em vez de tentar mudar a sociedade, as leis e os estatutos impostos por uma impossível ordem social, ou às vezes uma desordem afetiva de dimensões endêmicas.

Às vezes acho que perdemos o gosto de lutar, nas águas que levaram a certeza tão inabalável que tínhamos de que havia um lado "do bem" e outro "do mal". Do lado do bem estava a esquerda que nos apaixonava romanticamente, um mundo ideal onde a justiça social operaria milagres e transformaria vidas, acabaria com a indústria da seca no Nordeste, com as favelas e com todas as enfermidades que nos dividiam em castas, guetos ou ideologias. Hoje materializam-se os piores pesadelos futuristas, há um Rollerball em curso e mais violento ainda do que o filme que tanto me apavorou, isso na primeira versão, com James Caan. Quatro ou cinco empresas donas do mundo, e todos os jogadores têm de morrer, precisam morrer para legitimar os valores alicerçados no nada. Será que alguém ainda se rebela???

Penso na sensação de turbulência, a bordo de um avião. Nesses momentos tenho sempre a compulsão de fechar os olhos e me agarrar aos braços da poltrona. Mas na mesma hora digo a mim mesma: estou me agarrando a quê? O que é um avião a tremer no vazio? Qualquer contratempo e o nada nos engole fácil, fácil. Vivemos hoje a turbulência na pele. Um dos homens que mais admiro neste mundo, por sua coerência e verdade - valores raros como o Santo Graal hoje em dia - vive em Jerusalém e admitiu, um dia, que não podia indicar aos filhos um caminho seguro até a escola. Esse mesmo homem, o grande escritor israelense David Grossman, um dos mais ferrenhos defensores da paz e do entendimento, perdeu um de seus filhos na guerra do Líbano. Mas em quê Jerusalém é diferente do Rio de Janeiro ou de São Paulo, na guerra urbana que nós, reféns inapeláveis do crime e da brutalidade, travamos todos os dias? Como se isso não bastasse, estamos também à mercê de outras guerras, aquelas lutas internas impossíveis de se perceber no rosto de quem passa, ou de famílias aparentemente normais, que vão ao supermercado com as crianças e, poucas horas depois, são personagens de tragédias inacreditáveis como a morte da menina Isabella.

Sim, era disso mesmo que eu queria, precisava e preciso falar. E relutava por pensar que pode ser cedo, ou terrivelmente tarde, para entrar no mundo das hipóteses num caso desses. Em momento algum deixo de pensar em João Hélio, trucidado por duas bestas humanas sem motivo algum - e é impossível não comparar as duas histórias. Dois bandidos, dois animais, acharam "divertido" crucificar uma criança indefesa e acabar com a vida de uma família. O Brasil se chocou, o mundo se chocou, as mais inabaláveis convicções sobre a espiritualidade foram postas em cheque. Mas o que se pode pensar - e me perdoem se é cedo ou se é tarde para mexer nessa ferida - de um pai que não só permite como participa da violência contra sua própria filha, uma criança de apenas cinco anos? Está certo que não se pode condenar ninguém sem provas concretas, mas o quadro que se afigura a cada dia é mais tenebroso, é mais angustiante e nos deixa mais e mais perplexos. Lembro-me de um outro episódio de alguns anos atrás, cujos nomes e referências perderam-se na memória. Um pai, que perseguia a ex-mulher e tinha a obrigação de levar as filhas gêmeas todos os dias ao colégio, planejou nos mínimos detalhes uma vingança absurda: matou as duas meninas a tiros e suicidou-se, deixando uma carta que condenava a ex-mulher a sofrer pelo resto da vida, para "pagar" por algo que supostamente lhe teria feito.

Todas as informações que me chegam, no caso de Isabella, me assustam pelo caminho de violência que descortinam. Aquela violência profunda que turbilhona dentro da alma, e que leva pessoas aparentemente comuns a atos de extraordinária torpeza. Não me cabe aqui discutir as conclusões dos legistas, o rio de incertezas e evasivas que cerca todos os envolvidos, os desencontros que distorcem qualquer senso de justiça, a demora que nos leva a temer que haja mais Paulas Thomaz e Guilhermes de Pádua soltos por aí, com o "direito" de ter vidas normais, mesmo após terem sido julgados e condenados pelo crime hediondo que o país inteiro testemunhou.

Nessa hora só consigo pensar na mãe da menina Isabella, na mãe das duas gêmeas que o pai assassinou, na quantidade enorme de mães - e pais também, por que não? - que, por força da lei, têm de permitir que seus filhos pequenos passem fins de semana com o pai ou a mãe em ambientes sobre os quais não têm controle algum. É óbvio que não se pode julgar a maioria das pessoas pelos parâmetros patológicos que cercam o caso de Isabella, mas eu duvido que um certo arrepio não tenha passado pela cabeça de muitas mães e pais que porventura tenham algum tipo de conflito ou incerteza em relação a seus ex. Eu mesma sou mãe solteira e, talvez por presente do destino, nunca precisei passar por essa experiência, mas lembro que, quando a minha filha era pequena, tinha a mais ferrenha convicção de que nunca saberia lidar com isso.

Assim como o Brasil inteiro, eu espero e anseio e rezo para que a Justiça seja implacável com os assassinos de Isabella, sejam eles quem forem. A velha máxima de que "o direito de uma pessoa termina quando começa o de outra" precisa voltar a ser praticada em sociedade, para que tenhamos alguma esperança de nos curar das epidemias sociais que destroem e matam muito mais do que a dengue ou a febre amarela. Matam mais gente, destroem as ilusões e as esperanças, corroem brutalmente a sociedade e qualquer tipo de valor ético que ainda se tente sustentar. Precisamos reaprender a lutar pela nossa própria dignidade humana, pela compaixão e solidariedade perdidas, para deter o comércio abusivo de almas em troca de marcas famosas ou quinze minutos de fama em reality shows. Precisamos voltar às ruas com bandeiras e talvez cravos, com hinos e muita vontade, com um coração de estudante disposto, sobretudo, a reconstruir.

Se assim fizermos, talvez não mais seja cedo nem tarde. E talvez seja possível deter as lágrimas e o ranger de dentes, pois, como dizia Geraldo Vandré num tempo em que acreditávamos que éramos capazes de quase tudo, "quem sabe faz a hora, não espera acontecer".

quarta-feira, abril 02, 2008

Improviso



O espaço-tempo que me envolve não possui gravidade; avolumo-me sem fronteiras perceptíveis e apoio-me docemente no nada, que estranhamente não me devolve às impressões comuns de segurança, objetos com forma e cor e volume. Há uma profunda renovação celular em curso, não reconheço aspecto algum do meu próprio corpo; sobrevivo à varredura das estrelas e assemelho-me mais a uma fina onda de areia celeste, rebrilhante, a tomar formas várias num leito azul-escuro, infinito, insondável. Há um prazer alongado nesse sentir-se assim dispersa, pontilhada numa carta celeste, meio constelação, meio lembrança do que talvez tenha sido antes de ter perdido tão suavemente, quase sem perceber, a referência da matéria. É como descansar supostos músculos num banho de meteoros, que ora fervem, ora esfriam, é tocar de leve algum fundamento muito remoto da formação do Universo, entre sensações que perpassam a pele e sonoridades que relaxam o elemento potencialmente espiritual que ainda me garante essa espécie de registro akhásico, essa frágil construção de memória.
Ser parte da poeira estelar é insanamente confortável; ondas magnéticas reconstroem as sensações mais sutis, como mover um dedo, reviver um arrepio, uma onda de desejo, associar os sons que adejam em volta da luz, a formar padrões muito definidos, matemáticos... sim, há matemática nas estrelas e na música, e esta as leva muitas vezes ao limite do intangível, onde a música se entrega sem resistir ao imperativo das forças cósmicas, como Richard Strauss, talvez... Quem poderia sonhar que Assim falou Zaratustra tornar-se-ia quase indissociável das estrelas? Enquanto fragmento de corpo celeste, poeira ou sucessão de pontos de luz, ouço Richard Strauss a conectar-me as mais ínfimas partículas, a retecer-me enquanto alguma espécie de matéria, é às vezes Zaratustra, às vezes Vida de Herói, outras vezes Elektra a transformar sua dor em beleza, mas nada em mim dói, tudo flui e se encompassa, formando cadências de imensa claridade a mergulhar sem medo nos espaços escuros e sentir-se umedecer de finas alegrias, muito finas alegrias que desmancham e recriam a idéia de corpo que antes existia e agora já faz pouco sentido diante das imensidões onde navego, revisitada de luzes e sinfonias.
O manto celeste é generoso e parece colher-me, ainda sem peso e inexata, em seu abraço de vaga noite, e reconstituir-me delicadamente as moléculas recheadas de eternidade.