sexta-feira, dezembro 18, 2015

Marudhi

Erick Gutierrez como o Fauno Guardião
Foto: Paulo Barbuto

"Que eu tenha, hoje e a cada dia,
a força dos Céus,
a luz do Sol, 
o resplendor do Fogo,
o brilho da Lua,
a presteza do Vento, 
a profundidade do Mar, 
a estabilidade da Terra, 
a firmeza da Rocha.
Que assim seja! E assim se faça!"


A citação acima me chamou logo a atenção no programa do espetáculo Marudhi, que marcou o encerramento do ano da Company Ballet de São Paulo, no Teatro Alfa, nos dias 5 e 6 de dezembro. Uma pesquisa me revelou ser na verdade uma oração celta, muito antiga, dedicada à Grande Mãe, ou seja, à Natureza.

Esta pequena sutileza, com menção aos elementos, instigou ainda mais minha expectativa em relação ao enredo que estava por se desenrolar no palco - recheado de elementos mágicos, seres da natureza e mesmo iniciações, numa aura de espiritualidade que envolvia o bem, o mal e as escolhas de cada um em sua jornada pessoal.

O Fogo Sagrado, alimentado pela energia das Fadas e dos seres de luz no coração de uma imaginária (ou não) Floresta de Cogumelos Gigantes, ilumina toda a vida do lugar e de seus míticos habitantes, sempre guardado pelo fiel Fauno. Mas o Mundo da Escuridão, que almeja a Luz, ameaça toda essa tranquilidade: o Senhor das Trevas comanda uma invasão que afasta o Fauno Guardião, aterroriza os habitantes, rouba o Fogo Sagrado e faz a Floresta mergulhar numa escuridão que parece cada vez mais irremediável. 
Haverá salvação?

A Floresta de Cogumelos Gigantes 
Foto: Paulo Barbuto

A cortina se abre e nos convida à Floresta. O cenário de sonho, o impacto da música e a iluminação etérea fariam inveja a muitas produções de anos recentes, até mesmo do Theatro Municipal do Rio e do Theatro São Pedro, de São Paulo. 

A essa altura, já me transportei: decerto faço parte de alguma das tribos que habitam aquele universo. É como se estivesse justamente ali, participando e observando a Floresta de um ângulo menos, digamos, destacado. Acabo de anular, intuitivamente, os limites da caixa cênica.

Diante do Fogo, o Fauno (Erick Gutierrez) é uma presença que marcará todo o espetáculo e que, já no primeiro instante em que aparece, dá o tom da dramaticidade e da poética que veremos em cena. É ele que, com sua natureza humana e animal, sua alma simples e grandiosa, vai costurar todas as páginas da história concebida por Márcia B. T. Leite, diretora geral da Company Ballet. 

O Fauno guarda o Fogo 
Foto: Paulo Barbuto

A vida na clareira onde brilha o Fogo Sagrado é de uma perfeição e de uma alegria que nos fazem viajar na ilusão de algum paraíso feito apenas de verdade e beleza, onde criaturas de todos os tipos convivem em harmonia e festejam as bênçãos da Natureza, sem qualquer preocupação. Quem é que não sonha com uma vida assim?

Após a celebração do Fogo, as criaturas da Floresta dançam e comemoram, uma após outra. Nada mais bonito para apresentar os alunos da escola no que têm de melhor: a dança em todo seu entusiasmo. O grupo dos Elfos das Fitas, habilmente coreografado por Erick Gutierrez, traz à cena o estilo irlandês de sapateado. Uma festa à qual o Fauno se junta, exultante, esbanjando energia e construindo uma mágica particular. Não faltaram flores, muitas flores, e um carramanchão de fitas que transformou o palco num autêntico Festival da Flora, tal como seria celebrado nas tradições dos povos mais antigos.

Os Elfos das Fitas 
Foto: Thamilou

Sem que o ritmo da cena se altere, sucedem-se no palco vários grupos de ballet clássico, do adulto ao baby: Ninfas da Floresta, Delphines (flores das Fadas), Rubi, Mirra, novamente as Fadas, Libélulas... 

Muda o estilo, mas não a magia: entram os Gnomos do sapateado, coreografados por Andrea Pito e Erick Gutierrez. Mais uma vez o Fauno literalmente atravessa a cena, com seu enorme arco, alegrando e envolvendo os pequenos. Pixies, Naiades e Leprechauns são embalados pelo jazz e realçam o clima contagiante. 

Mas logo tudo se acalma, para contrabalançar: o palco é tomado por uma nova e delicada onda de clássico. Joaninhas, Fadas-Íris, Nixies, Fadas, Violetas, todas com figurinos de excelente gosto e de todas as cores. Mas o nosso incansável Fauno se prepara, mais uma vez, para agitar o pedaço ao lado dos Elfos das Fitas, que retornam numa coreografia arrebatadora, potente, com trilha fortemente marcada e sonoridade inesperada. 

Vale ressaltar, aqui, um aspecto extremamente virtuoso de Erick Gutierrez na criação de seu personagem. O Fauno jamais descansa; observa o tempo todo, antecipa situações e reações, protege o Fogo e também os seres da floresta. O mais interessante é que o ator e bailarino demonstra um entendimento da natureza do Fauno que vai muito além de sua simples encarnação: toda a movimentação cênica - inspirada, segundo revelou, no mítico bailarino russo Vaslav Nijinsky, intérprete e criador do célebre ballet L'après-midi d'un Faune - dá conta, de forma no mínimo espantosa, de uma dualidade essencial, intrínseca, desse misterioso ser. Meio bicho, meio gente, o Fauno tem atitudes extremamente humanas, aprisionadas porém num corpo que nem sempre o deixa se expressar como desejaria. Em sua inocência e também em sua sagacidade, que muitas vezes salva as situações, o Fauno de Erick Gutierrez é simplesmente irresistível.

Erick Gutierrez na pele do Fauno Guardião
Foto: Paulo Barbuto

Infelizmente, um grupo de Sílfides é vítima da fúria do Senhor das Trevas (Luciano Guia, em impressionante caracterização e atuação), que resolve acabar com a festa justamente no momento em que elas celebram o Fogo. Em vão o Fauno, as Fadas e outros seres tentam defender a Floresta. Um a um, os grupos que seguem o Senhor das Trevas ocupam o espaço e expressam sua visão de mundo: Djinns e Duendes em excepcionais coreografias de street dance, Goblins arrasando no sapateado, Salamandras no contemporâneo, Harpias e Anjos Caídos no street, Trolls no jazz adulto...  

Mas há quem comece a refletir sobre tantas transformações, já que o Fogo Sagrado se anuvia mais e mais, próximo da extinção. Começam a se anunciar as guerras internas no ambiente trevoso. E os Feiticeiros da Floresta resolvem se unir para enfrentar o Senhor das Trevas, honrando uma anunciada profecia: "Se Fogo é o que queres, no Fogo morrerás." É hora da inevitável disputa entre o Bem e o Mal.

Luciano Guia, o Senhor das Trevas
Foto: Paulo Barbuto

Pouco a pouco, a Luz ressurge das cinzas, a partir da ação regeneradora das Fadas sobre o Fogo Sagrado, e se estabelece o Círculo Mágico da Purificação, que traz de volta os seres de luz, movidos por vários ritmos e estilos: o sapateado, o clássico, o neoclássico. Elfos, Fadas, Feiticeiros e muitos outros seres celebram o retorno da harmonia e da paz ao seio da Floresta, numa grande festa de fitas, flores e muita alegria.

Apoteose: o triunfo do Bem
Foto: Paulo Barbuto

Depois de derramado o doce suor da arte, eram evidentes a alegria e o envolvimento de todos no espetáculo, desde o elenco até a produção. Além do alto nível técnico, percebe-se que há forças maiores em ação: o entusiasmo, a vontade, a fé. Esses atributos em conjunto, aliados a uma consistente pesquisa e ao apuro em todos os aspectos, fizeram de Marudhi um espetáculo memorável, do qual todos podem e devem se orgulhar. E que deveria - por que não? - ser apresentado outras vezes. Claro que, se isso não acontecer, é compreensível, já que envolve uma multidão de gente. Ainda assim, penso que pelo menos trechos dele devam ser reapresentados em festivais e eventos de dança, para que mais pessoas possam apreciar, se alegrar e se inspirar.

Marudhi me emocionou, me deixou leve e feliz. É bom ver que a qualidade e os valores essenciais fazem parte do projeto de uma escola de dança. O vídeo que explicou o empenho em envolver bailarinos e famílias no espírito da obra a ser dançada, com o apoio de uma contadora de histórias, completou esse entendimento. Isso é de muita valia para a formação de tantos jovens artistas, já que faz a conexão entre técnica e sentimento - algo indispensável para que a arte possa de fato acontecer em uma pessoa, de dentro para fora.

Até me deu vontade de ir ao Face, aonde quase todo mundo está, e curtir a página da escola. Um ótimo exemplo de competência e de capacidade de voar acima do banal e do comum, para plantar sementes inestimáveis na vida dos artistas de todas as idades que pisaram o palco em Marudhi

Toda a Floresta comemora a paz
Foto: Paulo Barbuto