quarta-feira, maio 30, 2018

CARTAS PELA LIBERDADE: Carta de Josep Maria Rufí a Dolors Bassa

Josep Maria Rufí e Dolors Bassa

Querida Dollors,
Te escrevo justamente hoje, quando já faz cem dias que você se encontra na prisão espanhola de Alcalà-Meco. E só isso já é um golpe a mais.
Em Torroella de Montgrí, procuramos nos apoiar uns aos outros e, acima de tudo, apoiar os teus. As mostras de solidariedade e de ajuda material são as de um povoado que se orgulha muito de você, da nossa vizinha ministra do país. Os laços amarelos e suas fotos, que estão por toda parte, nos recordam o tempo todo a ignomínia.
Já sabe que a câmara municipal aprovou, com unanimidade de todos os grupos, a moção pela soltura dos presos políticos, pelo retorno dos exilados e a denúncia do desvio antidemocrático e autoritário cometido pelo estado espanhol.
Talvez eles pensem que, ao levarem aqueles que são nossos legítimos representantes à prisão ou ao exílio, iremos nos render ou desistir de exercer nosso mandato democrático, emanado dos cidadãos. Nada mais distante da realidade.
Os presídios femininos são invisíveis. De fato, muitas vezes as pessoas se esquecem de você ou da Carme Forcadell. As prisioneiras políticas têm pouca ressonância e, muitas vezes, são omitidas quando se fala dos “presos políticos”. Mas em Torroella de Montgrí nós não vamos nos esquecer. Temos você sempre em nossos pensamentos e trabalharemos incansavelmente até conseguir a sua liberdade.
Há poucos dias tive chance de visitá-la na prisão. Os quarenta minutos foram demasiado curtos, mas não nos impediram de fazer nossas mãos coincidirem através do vidro, e que fossem transmitidos todos e cada um dos abraços que me tinham encarregado de te oferecer. Perguntei qual era a mensagem que você queria que eu transmitisse. Persistir, foi a resposta. E é isto que estamos fazendo.
Lembramos de você todos os dias. Da nossa Dolores Bassa, mulher, filha, mãe, avó, mestra, sindicalista, diretora, conselheira do Governo Autônomo da Catalunha... sempre risonha, otimista, cheia de vida, valente, indestrutível. Aquela que não dobrarão jamais, porque é um exemplo de sacrifício e de dignidade a serviço da Catalunha. Uma voz, muitas ideias e uma honradez que jamais alguém conseguirá aprisionar.
Durante muitos anos, trabalhamos lado a lado na prefeitura. Como prefeito, tenho sempre presente o lema que você nos inculcou: o compromisso nacional e o compromisso social são duas faces de uma mesma moeda.

Dolors, como diz a letra de uma canção do Txarango: “Conta comigo nos dias de luta/ se a esperança de ti descuida/Cada mau passo encontrará um braço/Conta comigo.”

Enquanto isso, como da última vez em que nos vimos em liberdade, lembro de você no Velho Ter, em Estartit, passeando na beira d’água, como você tanto gosta. Logo voltará a fazer isso, naquela paisagem empordanesa que os deuses nos deram de presente, com o Montgrí, o Ter e as Ilhas Medes.

Vamos tirar você daí. Vamos tirar!

Josep Maria Rufí Pagès
Prefeito de Torroella de Montgrí


quarta-feira, maio 23, 2018

A RESPOSTA ALEMÃ: NÃO É NÃO


Tradução autorizada pelo diário digital Vilaweb

O Tribunal Superior de Slesvig-Holstein descartou ontem, pela segunda vez, a acusação de rebelião que a justiça espanhola formalizou contra o presidente Carles Puigdemont. Foi contundente, depois de ter revisado o conteúdo que Llarena afirmava trazer “novas evidências”. A resposta do tribunal, de fato, lembra o slogan de alguém que um dia foi um político, e que se dizia de esquerda: “não é não”.
A bofetada é monumental, duríssima. Não se pode soltar foguetes, mas fica cada vez mais evidente que Llarena está perdendo esta cruzada contra o governo catalão no exílio. Até porque as tais novas evidências não chegaram a fazer nem cócegas no tribunal – e a Espanha, para tentar salvar a pele, precisa se agarrar, como ferro em brasa, ao fato de o tribunal ter aceitado a validade da euro-ordem, ao contrário do que fez o tribunal belga.  Se eles se conformam com tão pouco, por mim, vamos em frente. O tribunal alemão procedeu como normalmente faz – nesse caso, foi o tribunal belga que tomou uma decisão extraordinária, nada comum. Mas cada um comemora o que quer, ainda que seja absurdo. Porque, francamente, comemorar o fato de terem aceitado uma euro-ordem quando respondem, ao mesmo tempo, que não aceitam a acusação que que consta nessa euro-ordem, convenhamos, é algo muito difícil de se compreender.

Permitam-me insistir na necessidade de não acreditar, de maneira acrítica, em tanta propaganda motivada por interesses, sem absolutamente nenhuma base factual, em tanto exagero em torno de uma manchete chamativa

Os acontecimentos de ontem têm ainda um matiz mais interessante, que deveria nos ajudar a entender em que ponto estamos. A notícia chegou em duas fases: na primeira, ficamos sabendo que o ministério público alemão aceitara a tese de Llarena. Logo em seguida, os meios de comunicação unionistas começaram a cantar vitória, com manchetes que praticamente apresentavam Puigdemont a caminho de Madri, detido e algemado. E isso apesar de a nota oficial do tribunal ostentar, em letras enormes, o título “Puigdemont remains free” (Puigdemont continua em liberdade).
Em contraste, quando ficaram sabendo que o tribunal havia negado pela segunda vez que tenha havido “rebelião”, as manchetes diminuíram repentinamente de tamanho. Alguns veículos enterraram a notícia tão lá embaixo que mal se enxergava; outros, como “El País” ou “El Mundo”, deram mais ênfase ao fato da decisão ser “provisória” do que à própria decisão em si. Como se, dessa forma, o nocaute não fosse tão nocauteante assim.
Há dias que venho avisando que o unionismo está triste e abatido – e isto faz com que seus articuladores intensifiquem os fogos de artifício de uma maneira muito irresponsável e até perigosa para eles mesmos. Isso explica por que, ontem, vários deles exibiram, por algum tempo, a imagem de um Puigdemont quase extraditado, e com isso se arriscaram ao ridículo que se seguiria. Domingo também disseram que o 155 continuaria...
Esperemos mais algumas horas antes de tratar do tema de domingo; enquanto isso, porém, permitam-me insistir na importância de não acreditar, de maneira acrítica, em tanta propaganda motivada por interesses, sem absolutamente nenhuma base factual, em tanto exagero em torno de uma manchete chamativa. Desde a derrota de 21 de dezembro, os monarquistas não têm nem rota, nem plano de fuga – e por isso continuam errantes, à base de manchetes, na tentativa de manter viva a esperança de seus seguidores, incapazes de adaptar-se à realidade. Hoje vemos, da mesma forma que vimos ontem, que tudo isso é realmente triste, sobretudo do ponto de vista da informação, mas que com certeza é uma atitude que explica muitas coisas.

segunda-feira, maio 21, 2018

CARTAS PELA LIBERDADE 9: Carta de Vicent Partal a Jordi Sánchez

Vicent Partal e Jordi Sánchez

Já deve ter uns trinta anos que escrevo, no mínimo, um artigo por dia. É o meu trabalho. Cada dia tento fazê-lo com a mesma meticulosidade com que meu pai, ao fechar seu bar, punha-se, ainda que cansado, a limpar a cafeteira durante horas, para que no dia seguinte o café saísse bom. Meu pai, minha mãe, minha família, me ensinaram a dignidade do trabalho, o amor pelo ofício que abraçamos e o respeito às pessoas para quem trabalhamos e a quem servimos.
Durante todos esses longos anos de jornalismo, tenho visto coisas que não pensava serem possíveis. Conheci gente que me ensinou que a ética, tanto profissional como cívica, está acima de tudo. E o primeiro de meus mestres foi Ramon Barnils. Assim entendo que, além de fazer as coisas bem feitas, como os meus pais faziam, tenho a obrigação – em função da minha profissão e da responsabilidade social que advém dela – de pensar na sociedade à qual sirvo, de sonhá-la sempre melhor e de fazer tudo que puder para continue a melhorar, a partir do meu modesto pátio de manobra dos teclados.
A partir desses dois compromissos, acostumei-me a explicar o que vejo, a cada dia, diante dos olhos de centenas de milhares de pessoas. E me empenho, diariamente, para fazê-lo com honradez, com coerência e com uma atitude positiva.
Nesses trinta longos anos já escrevi sobre praticamente tudo e em todos os estados de espírito que conhecia e que poderia imaginar. Escrevi esperançoso e decepcionado, ansioso e pessimista, doído e feliz, desconcertado e seguro. Escrevi com euforia, após voltar de milhares de manifestações em Barcelona; espantado, de dentro de uma trincheira croata prestes a ser invadida pelos sérvios; exultante, bem ao pé de um muro em Berlim; indignado em Burjassot, terra de Guillem Aguilló; derrotado após saber que assassinaram Anna Politkovskaia poucos dias depois de ter jantado com ela; extasiado após ver as ruas de Palma cobertas de verde; aliviado ao ver Mandela caminhar em liberdade, depois de ter intuído aquele momento na porta de sua prisão; divertido ao ver o cretino do Valls se perguntar em Perpignan, em público, se tinha direito de falar catalão, por estar representando na França.
Se te explico tudo isto é apenas para dizer que não me lembro de um texto que tenha sido mais difícil de escrever do este que te escrevo agora. Que as palavras que tenho, e são tantas, tornam-se escassas quando quero te dizer alguma coisa.
Se o apresentador quer fazer um bom trabalho quando se coloca diante das câmeras, um exercício é fundamental, essencial e imprescindível: acalmar o corpo, para deixar que a cabeça fale. Não se pode escrever com o corpo tremendo, não é bom escrever com o corpo tremendo. A cabeça deve governar o pensamento. Mas há momentos que é tão difícil, tão complicado fazer isso...
A injustiça faz o corpo tremer. Tremer muito, e com muita intensidade. E a injustiça que você, os outros presos e os exilados estão sofrendo faz meu corpo tremer como nunca. Todos os dias. Cada vez que escuto seu nome, tremo. Cada vez que vejo uma foto sua, tremo. Cada vez que passo pela Rua de Sants, onde um dia você me acalmou quando parecia que tinham me encurralado de vez, tremo mais ainda. Quando vejo a Avenida de Maria Cristina, onde você me explicou que nós ganharíamos e como faríamos, tremo de novo; quando paro na esquina da Granvia com a Rambla de Catalunya, naquele ponto em que procuravas convencer as pessoas, com o megafone na mão, e a mim também, ao pé na rua, que aqueles guardas civis tinham de sair dali , quanto mais rápido melhor, e quanto mais tranquilamente melhor, meu corpo inteiro treme.
Deve ser por isso que, cada vez que tento te escrever, me custa tanto enganchar uma letra na outra, articular um texto que faça sentido. A injustiça da qual você é vítima provoca em mim uma indignação que vai muito além da minha capacidade de controlá-la.  Fico indignado ao ver como mentem sobre o que você fez naquela noite, sendo eu, como sou, testemunha dos teus esforços. Fico indignado quando tentam te apresentar como algo que você não é, e quando lançam, sobre você e seus companheiros, tanta miséria moral, tantas mentiras. Fico indignado quando vejo manipularem as pessoas de maneira tão descarada e indecente. Me revolta, toda noite, pensar em você e no Cuixart na cela de Soto, pensar em todos os outros nas celas de Estremera e de Alcalà.
Mas hoje me comprometi a te escrever e, para isso, tive que passar um bom tempo, um tempão aliás, fazendo aquilo que te expliquei lá atrás: acalmando o corpo. Fiz isso pensando em onde estamos hoje e em onde estávamos da última vez que nos vimos. Assisti de novo os vídeos da manifestação das candeias, na Diagonal, da manifestação da rua da Marina, da do Paralelo. Voltei a ver as imagens da concentração que as pessoas fazem, todo dia, diante da Prefeitura de Arenys de Mar, onde tenho ido sempre que posso, onde fui hoje. Repassei fotos e vídeos de cidadãos que, daqui e dali, encararam os radicais do estilete. E revi as imagens da gritaria ensurdecedora endereçada ao Bourbon e sua cara de desgosto, dentro do Palau de la Música.
Revisitei, com um sorriso, os atos dos 21-D. E o discurso de Maragall, naquele primeiro dia no Parlamento. Vi novamente a marcha a Bruxelas. Rememorei uma conversa com o presidente Puigdemont em Berlim.  Reli a agenda dos atos que fazíamos a cada dia e me recordei de que, no dia seguinte ao seu ingresso na prisão, eu fazia um ato nos Esculápios de Sant Antoni, que teve de ser concluído dentro da igreja, porque não cabia mais ninguém em nenhum outro lugar. E desde então o movimento foi incessante, todos os lugares sempre cheios de gente levantando cartazes com os retratos e os nomes de cada um de vocês. Em Santa Maria d’Oló estávamos todos de pé, em silêncio, durante um longo tempo, cada um com seu cartaz. Na Garriga, onde havia gente no palco e em todo lugar, aplaudíamos vocês intensamente, enquanto levantávamos um daqueles desenhos do Calvís. Em Girona, com as pessoas ainda pendurando grandes letreiros e laços do lado de fora, enquanto a sala, lá dentro, já estava completamente lotada...
E o que você faz, do fundo da sua cela abafada, querido Jordi, é criar tudo aquilo e muito mais. Nós te devemos, eles te devem. Seu sacrifício pessoal, o sacrifício pessoal de todos vocês, que estão presos e exilados, o sacrifício de todos os que sofreram represálias por uma ou outra causa, é uma das alavancas mais poderosas que o nosso povo pode utilizar para se libertar. Vocês são uma das alavancas mais poderosas da liberdade. Porque o sacrifício de vocês faz de todos nós devedores. Porque a dignidade de vocês faz com que qualquer esforço nosso pareça pouco. Porque o compromisso de vocês nos dá força dia após dia.
Você não sabe o quanto me agradaria poder tomar de novo um café contigo, mas tudo aquilo que se passou faz com que eu compreenda que somente em um país livre terá sentido tomar um café como fizemos tantas vezes antes - dois cidadãos interessados na coisa pública, dois amigos desfrutando de uma conversa amena.  Por isso, já não há como voltar atrás, não há uma pausa na qual possamos nos refugiar.  Existe somente o sentimento vulcânico de que temos de trabalhar até o esgotamento total por vocês e pela liberdade de vocês, o que é o mesmo que dizer trabalhar por todos.
Dá um grande abraço no Cuixart. Diga-lhe que, sempre que leio Fuster, penso nele...

domingo, maio 20, 2018

CARTAS PELA LIBERDADE 8: Rigol, de Gispert e Benach, ex-presidentes do Parlamento Catalão, escrevem a Carme Forcadell

Núria de Gispert, Joan Rigol, Ernest Benach e Carme Forcadell

Querida Carme,
Em 14 de maio passado, elegemos um novo presidente para o Governo Autônomo, como você já deve saber. Quim Torra é esse novo Mui Honorável Presidente, e estamos contentes por finalmente podermos encerrar os efeitos do 155 e começar a recuperar a normalidade das nossas instituições. Esperamos que continue assim – e que não tenhamos de lamentar novamente situações arbitrárias e injustas, como as que temos sofrido nos últimos meses. Esta alegria, anda assim, é muito relativa - e se refere a um momento muito pontual, já que a tristeza pela situação que vivem as pessoas encarceradas e as que estão no exílio é permanente.
Logo que acabou a plenária, os serviços de protocolo – diligentes como sempre – organizaram uma fotografia com os presidentes do Governo Autônomo e do Parlamento que estavam presentes em nosso Salão de Sessões. Lá estavam o presidente Torra e o presidente Torrent, acompanhados dos presidentes Montilla e Mas, além de nós três, teus predecessores no cargo. Mas faltava você, Carme; e faltava também o presidente Puigdemont. São ausências forçadas e injustas. Por outras circunstâncias, não estavam presentes os presidentes Maragal e Pujol, mas a sua ausência doía no fundo do coração, nos fazia muito mal, foi o que comentamos entre nós. E nesta sua ausência dolorosa, estamos ao seu lado, Carme, e partilhamos do seu sofrimento.
Temos tido notícias suas pela sua família, pelas cartas que vem escrevendo e que recebemos. Ou que pessoas que nos apreciam, e sabem que sofremos por você, nos explicam – e nos fazem chegar fragmentos, ou simplesmente lembranças, que agradecemos sempre.
Conhecemos a sua fortaleza, mas sabemos também que, nesses momentos graves, é preciso um pouco mais do que isso para poder superar o dia-a-dia da prisão. Que, como comentamos mais de uma vez, deve ser horroroso para uma pessoa cheia de vida como você, que sempre estava no lugar certo por estar em toda parte, com uma energia infinita e contagiante. É por isso que queremos dizer que você está presente em nossos pensamentos, no dia-a-dia, em tudo aquilo que fede e que não podemos fazer, e também em tudo que desejaríamos poder fazer, mas que não nos deixam.
Falam que você cometeu um delito horrível: permitir o debate, o debate democrático, dentro de uma instituição como o parlamento – onde se trata, precisamente, de fazer uso da palavra para debater, para confrontar posicionamentos políticos. É tão incompreensível, Carme! É o que todos nós sempre fizemos: dar a palavra aos deputados e às deputadas, representantes do povo soberano, para que falassem, debatessem, discutissem também - e, ao final, votassem. Esta é a base de toda democracia. Para os opositores, este é o seu delito, e por ele te trancaram numa prisão cinza e triste, longe de casa, longe dos seus. Você é vítima de haver dado voz ao povo, o que é fundamental e acaba por definir a qualidade de uma democracia.
Sabemos que é muito fácil dizer e pedir o que vamos pedir, embora não seja tão fácil assim de fazer; apesar de tudo, porém, vamos pedir. Continuem fortes! Resistam! Pensem que milhares e milhares de cidadãs e de cidadãos do nosso país têm consciência do sacrifício que vocês fizeram. E que vocês são parte, com todas as honras, da memória coletiva da nossa gente, na caminhada rumo à plena liberdade. Na caminhada rumo à tão sonhada república.
O amarelo, aquele amarelo que se popularizou na ANC (Assembleia Nacional Catalã), quando você a presidia, converteu-se no símbolo da liberdade de vocês. Quando cruzamos com uma pessoa que traz um laço amarelo, uma flor amarela, um detalhe amarelo, um lenço amarelo e até mesmo uma gravata amarela, ocorre uma cumplicidade instantânea, invisível aos olhos, que faz pensar que vocês estão presentes, de modo permanente, na mente de muitas, muitíssimas pessoas que também sofrem com a situação dos presos políticos, que desejariam vê-los livres e que desejariam ter todos vocês junto de nós.
Isso sucede, também, porque a esperança da Catalunha depende da sua liberdade, da liberdade de todos os presos e presas, do retorno dos exilados e exiladas. Esta liberdade é a única resposta que pode ser dada a uma situação tão injusta quanto pode ser a prisão preventiva com que penalizaram todos vocês.
Carme, queremos que saiba que é um privilégio compartilhar com você a honra de haver presidido a nossa câmara, o Parlamento da Catalunha. E queremos que saiba também que precisamos abraçá-la bem forte, e abraçar também a conselheira Dolors Bassa, a quem pedimos saudar em nosso nome. Chegamos a organizar uma visita a Alcalà-Meco, mas o custo se revelou muito alto, altíssimo. Com detalhes dessa natureza, inteiramo-nos do cinzento que há em tudo o que hoje te rodeia, das dificuldades para desfrutar de um mínimo de normalidade. É ignominioso haver presos políticos, mas, em termos de país, é uma vergonha que a presidente do nosso Parlamento esteja privada de sua liberdade por haver facilitado, ao povo e aos seus representantes, a oportunidade de decidir seu futuro. É um insulto às nossas instituições e à nossa história, que neste momento personificamos em você.
Muito ânimo, Carme. Sabe que estamos com você e que pode dispor de nós para tudo que necessitar. Tente evitar, na medida do possível, os momentos difíceis e tristes, pois sabemos que eles existem. E saiba que precisamos de você ativa, inquieta, incansável. Precisamos de você na liderança e te queremos ver de volta à casa, com os seus, com todos nós.
Muito ânimo, muita força e um abraço imenso!
Joan Rigol i Roig
Ernest Benach i Pascual
Núria de Gispert i Català
Presidentes do Parlamento da Catalunha (1999-2015)

CARTAS PELA LIBERDADE 7: Carta de Lluís Llach a Jordi Turull

Lluís Llach e Jordi Turull

Meu querido Jordi,
Olá, valente, como estás? Tenho certeza de que, a essa hora, já deves estar organizando um grupo parlamentar para Estremera e que já fizeste um monte de amigos. E esses amigos fazem muito bem em estar próximos de ti; és um tio extraordinário, que ama a vida, as pessoas e um país, como se costuma dizer, pequeno.
Durante os dois anos que tu e a Marta me ensinavam a ser deputado, nunca imaginei que, em tão pouco tempo, iríamos construir uma rede de cumplicidades que permitiria, a uma pessoa de 70 anos como eu, dizer que te considero um amigo magnífico.  
Não gostaria que o tom ameno desta carta me fizesse esquecer de destacar a dignidade do teu currículo, desde que nos conhecemos. Deputado, presidente do grupo parlamentar do Junts pel Sí, Mui Honorável conselheiro da presidência e, finalmente, candidato a Mui Honorável presidente do Governo Autônomo.
O Junts pel Sí era um grupo imponente pela quantidade de deputados – e surpreendente pela diversidade das adesões, comportamentos e procedências. Eu, que só te conhecia de foto, entrei de nariz empinado na primeira reunião do grupo que tu presidias. Pura bobagem, pois fizeste com que eu e muitos outros, que éramos novos, não só baixássemos, como destapássemos totalmente os nossos respectivos narizes. Era preciso ter alguém com uma postura e um temperamento muito especiais para gerenciar aquele mega-grupo de confluências insuspeitadas. Mas você, com a ajuda da Marta, teve o jogo de cintura e o senso prático necessários para essa empreitada. Eu te parabenizo e te admiro por isto.
Com certeza fui um dos primeiros a saber que o presidente Puigdemont tinha te empossado na função de conselheiro; me parece que foi no dia 14 de julho. Me recordo muito bem que viestes ver-me, no escritório do parlamento, e que eu te perguntei se estavas preparado para as consequências que aquela nomeação teria para ti. Bem, talvez com outras palavras, me disseste mais ou menos o seguinte: “Lluís, estou na política pelo meu país, e o que hoje vivemos é extraordinário.” E, aparentemente sem dar muita importância, completastes: “Ao contrário de alguns outros, que têm filhos pequenos, as minhas já são adultas e, se eu for preso, têm condição de entender.”
Para mim, aquilo não passou de uma das muitas brincadeiras que eram comuns entre nós, naqueles dias.
Pois contra todos os oráculos aziagos, chegou o esperado 1º de outubro. Tanto foi que tínhamos urnas. Tanto foi que tínhamos cédulas. Tanto foi que apareceu um censo. E tanto foi que o referendo aconteceu. Mas, sobretudo, tanto foi que tínhamos uma quantidade enorme de pessoas dispostas a defender a democracia, a liberdade e a república contra as forças repressivas de um Estado enlouquecido. Que orgulho formar um país com gente assim, Jordi!
Poucos dias antes do 27 de outubro, data em que a maioria dos deputados aprovaram a república, vieste ao meu encontro para me dizer: “Me lembra de que, antes que as coisas se compliquem, vou precisar te pedir um favor.”
E então chegaram aqueles dias de vertigem; já não me recordo se foi no dia 26 ou no próprio dia 27, mas o fato é que a situação já estava bem complicada. “Ei, Jordi, estou te lembrando que precisas me pedir não sei o quê.”  Então tu te aproximaste, meio envergonhado, com uma expressão muito particular no rosto, e me pegou pelo braço.
Confesso que estava muito curioso; esperava ansiosamente para saber onde irias chegar. E foi mais ou menos assim: “Olha, Lluís, como já vimos o que aconteceu com o Jordi Sánchez e com o Jordi Cuixart, o mais certo de acontecer é eu também ser preso... Me desculpe por pedir isso, mas tem uma coisa que me daria muita alegria – e espero que você não se incomode de fazer. Gostaria que escrevesse à mão a letra da canção que fez para a Laura [Almerich, violoncelista e amiga do cantor] e, como tem três estrofes, queria que dedicasse uma à Branca, minha mulher, uma à Marta e uma á Laura, que são as minhas meninas. E que, quando me prenderem, levasse essa letra até Parets, para que saibam que, enquanto estou fazendo aquilo que é preciso fazer, não deixo de pensar nelas.”
Jurei na hora que o faria. Depois que saíste, fiquei ali, com um turbilhão de sentimentos a me sacudir. E agora, que voltaram a te trancar na prisão, quero contar isso às pessoas, para que saibam que, com todas as limitações e desacertos que qualquer ser humano pode cometer, a qualidade da coragem dos homens e mulheres que levaram às últimas consequências o seu compromisso político, assim como a lealdade deles às pessoas que lhes confiaram seu voto soberano em 2015, traz junto consigo uma sensibilidade de altíssima qualidade humana.
É isto que penso de ti, Jordi. E se, um dia, alguém me disser que te viu numa fotografia qualquer, darei meia-volta para recordar-te do jeito que te conheci. Jordi Turull. Comprometido, humilde, sensível, leal e valente.
Agradeço ti e a todos que, como tu, hoje vivem nas prisões ou no exílio por terem defendido o mandato democrático que lhes foi confiado pelo povo.
Um abraço tão grande quanto os 600 quilômetros que hoje nos separam.
Ah, te amo. E viva a República Catalã!
Lluís Llach



sexta-feira, maio 18, 2018

CARTAS PELA LIBERDADE 6: Carta de Núria Carrera a Dolors Bassa


Núria Carrera e Dolors Bassa


Minha cara Dolors,
Estas linhas pretendem ser a continuação da amizade que iniciamos há alguns meses. Nos víamos toda semana para levar avante a renda garantida E a cada semana eu aprendia contigo. E quanta coisa consegui aprender! Você chegava bem cedo, trazia um lenço e já começava a agitar. Mais ativa do que qualquer pessoa, brincava muito, especialmente com o Sixte, e o Diosdado acompanhava. Acho que nos entendíamos bem porque somos parecidas: somos pessoas de rir e de chorar.
Para mim, ver uma conselheira chorar foi uma lição de vida. Foi amor à primeira vista. Sentimos que nos entendíamos e eu, Dolors, quero dizer logo de cara que foi um privilégio ter visto de perto a sua dignidade, a sua valentia e a vontade de assegurar, de maneira bem enérgica, um projeto – o da renda garantida – que não havia nascido dentro dos partidos. No começo, porém, os partidos tampouco o assumiram completamente. Mas você ajudou a mudar isso; convenceu gregos e troianos da necessidade de fazer aquilo que a iniciativa popular da sociedade organizada demandava: uma lei da dignidade. E a renda garantida é isso também.
Uma vez concluído o trabalho, cujos detalhes não conheço inteiramente, penso que seria ótimo se você pudesse encabeçar a criação de um plano sequencial. O governo do estado impugnou alguns artigos. Como dizíamos, juntas sem República, os avanços sociais são muito custosos. Mas, com sua liderança, você poderia revisar o modo de aplicação atual, a partir da Catalunha, e os prazos da renda garantida, de modo a conseguir viabilizar uma implantação efetiva e justa.
Estas linhas também querem falar das mulheres. Das mulheres lutadoras. E Falar da parcela invisível que nós, mulheres, ainda formamos, e que vocês, as prisioneiras políticas, representam de maneira tão poderosa. Minha amiga Montse, trostskista, esteve na prisão durante o franquismo. Agora é independentista e me explicava que a invisibilidade das mulheres também existia naquela época. E que ela também passou por isso. Estava presa com seu companheiro e outros membros da célula., mas sua voz não era ouvida. Montse, a invisível. Dolors, a Invisível. Carme, a invisível. Marta, a invisível. São tantas as invisíveis!  Agora, porém – e esta é a parte que nos pode dar mais fortaleza – a tomada de consciência das mulheres ganha força em alguns momentos. A digna e poderosa reação à insultuosa sentença contra a vítima da “Manada” é o exemplo mais recente. Visíveis como nunca.
Estas linhas, em resumo, querem te tornar visível, tornar visíveis a nós todas. E também querem dizer que a dignidade vem acompanhada da esperança. E que a esperança, para ser efetiva, para mudar o curso das vidas, há que vir acompanhada do empoderamento. Se não vier, não haverá esperança. E não haverá dignidade.  A conexão entre dignidade e esperança já foi explicada por muitas outras. Nesses dias, porém, muito além de uma explicação, é o que sinto: os processos de mudança vêm acompanhados da dignidade das pessoas que, fortalecidas, lutam contra a desesperança por meio do empoderamento.
Por isso quero dizer que continuarei te escrevendo e te estimando. E que você nunca será esquecida, e que a sua dignidade é a nossa.
Núria Carrera


CARTAS PELA LIBERDADE 5: Carta de Emigdi Subirats a Carme Forcadell

Emigdi Subirats e Carme Forcadell

Querida Carme,
Para começar, queria compartilhar contigo alguns sentimentos que gostaria de poder te explicar melhor pessoalmente, se você não se encontrasse cruelmente apartada da sua gente, sequestrada pelos poderes políticos do estado espanhol. Não obstante, para mim é fácil rememorar o período em que você fundou a Assembleia Nacional Catalã – ANC – e tornou-se público o fato de que a presidente da organização era uma xertolina (natural de Xerta). Nem precisa dizer que recebi a notícia com grande satisfação, porque sempre me alegra ver a gente da terra ebrenca (Ebre) na liderança de projetos participativos e ambiciosos, de muito peso. A ANC foi, sem dúvida nenhuma, um movimento que acelerou a impecável resposta catalã à dura agressão espanhola contra o estatuto.
A memória coloca todo mundo no seu devido lugar. Primeiro vieram as falsidades perenes do Sr. ZP, o presidente espanhol que se tornou, voluntariamente, um mentiroso de marca maior, desses que fazem e depois desfazem. Depois, aquele personagem sinistro chamado Alfonso Guerra passou rapidamente por cima do que prometera, com toda arrogância, que levaria a cabo. Com a cara de ameixa azeda que sempre faz, era como se os cidadãos da Catalunha lhe devessem dinheiro! Por fim vieram as assinaturas, estimuladas pelo PP, contra o texto aprovado majoritariamente pelos catalães e pelas catalãs - texto esse que também não recebeu o meu beneplácito, longe disso, mas que democraticamente aceitei – e a devastação final, legalizada pelo tribunal espanhol correspondente. Os mandantes já tinham seu banquete, já tinham concretizado seu projeto de destruição - ainda que não tivessem previsto, em nenhum momento, o nosso movimento cidadão exemplar, o mais importante da Europa nessas primeiras décadas do século 21. Uma parte muito representativa e majoritária do povo logo se levantaria contra tanta ignomínia e tanta imposição.  
No sábado, 7 de abril, apresentei uma compilação biográfica no plenário da câmara municipal de sua terra natal. Trata-se de um perfil de outra grande mulher xertolina, a romancist Francesca Aliern. Durante a apresentação, fiz questão de mencionar seu nome como xertolina ilustre – como uma mulher que soube conquistar o respeito de tantas pessoas e que se tornou a alma de um povo em movimento. Tive o prazer de exigir, tão alto quanto pude, a sua libertação, assim como dos oito companheiros engaiolados por seus ideais políticos e afetivos. Em Xerta, o povoado onde te viram nascer e crescer, onde mora sua mãe, já em idade muito avançada, e onde se vê tanta tristeza coletiva por causa da sua prisão, não pudemos deixar de ler algumas palavras dedicadas à presidente do Parlamento da Catalunha! Os senhores e as senhoras do número podem nos privar de muitas coisas, mas jamais poderão arrancar nossos sentimentos. A legalidade deles pode dispor dos cargos e distribuí-los como as cartas de um baralho, mas a vida política deste país não depende exclusivamente dessa legalidade forasteira, exercida na base de decretos, que não é aceita pela ampla maioria dos cidadãos. Você é a nossa presidente!
Durante o ato, tive também o prazer de trazer à memória o nome de Antoni Anyon, aquele homem probo da Renascença xertolina que se definia como “o primeiro dos catalanistas ebrencos”. Farmacêutico, homem de cultura, aficionado das letras, fez um trabalho magnifico, culturalmente falando, que o levou a tornar-se o primeiro filho predileto do povoado. Seguindo os seus passos, e os de tantos outros xertolinos e xertolinas, não lavrou em terra infértil. A nossa terra precisa de Forcadells, de Alierns e de Anyons. Precisa de firmeza e valentia. E você é uma mulher muito valente e com grande capacidade de liderança!
Sua mãe sofre muito em ver a filha privada da liberdade. Sua família permanece de pé e quer seguir adiante, com a convicção plena de que você é uma mulher coerente, cheia de responsabilidade e de savoir faire. É claro que uma mãe já idosa não consegue entender sua situação; ninguém consegue, mas há tanta gente do seu lado, sofrendo por você, que todos acreditamos que iremos te reencontrar muito em breve.
Alcalà-Meco é um lugar infame – ao qual te condenaram políticos que merecem o mesmo adjetivo. E com o suporte de três partidos que apostaram no número que queria destruir o autogoverno catalão e castigar duramente as pessoas que ocuparam cargos de responsabilidade durante o período mais esperançoso da política catalã contemporânea. Em 1º de outubro, fez-se realidade um sonho! Milhares de urnas, milhares de cédulas, centenas de milhares de pessoas com um sorriso no rosto e toda a esperança do mundo, exerceram o sufrágio universal com mais convicção do que nunca. Todos vivemos um dia memorável, ainda que perturbado por episódios de violência policial (de caráter evidentemente político, e com o beneplácito do ‘3 em 1’ do nacionalismo espanhol). Ainda assim, a mobilização do povo, repito, foi efetivamente memorável!T
A Dolores Bassa e você permanecem sequestradas, à sombra. Nós as temos presentes em todos os momentos. Apesar de que, como recordava a Mireia Boya (que outra grande mulher!), fala-se com mais frequência de Estremera e de Soto del Real, os outros dois locais sinistros de sequestro! Mas vocês não estão sozinhas! São dois grandes exemplos para a nossa gente, assim como o foram durante os meses em que detiveram a grande responsabilidade de dirigir o Parlamento da Catalunha. Este cargo te honra de verdade, e te alça à condição de Grande Honorável, apesar dos esforços inauditos de tantos políticos que queriam tornar sua vida impossível – e que agora se regozijam com a sua privação de liberdade. Não tenho rancor de ninguém, mas a desumanidade que alguns políticos regionais demonstram é algo que será difícil de esquecer.
Mas continuamos aqui, com o apoio dos cidadãos e com um povo que deseja ser livre. Despeço-me com um parágrafo escrito pelo meu amigo Manel Ollé, um grande expoente das letras, natural de Ulldecona, entusiasta da literatura catalã. Até parece que pensava em você quando escreveu seu romance O pelotão da noite fechada
“Tenho muito interesse em esvaziar as prisões da multidão formada por todos aqueles que vivem mal e que nelas se amontoam. As prisões são uma das grandes vergonhas do regime que hoje nos governa. É preciso trabalhar para soltar imediatamente todas as pessoas que estão privadas de liberdade tão-somente por haverem tornado públicas as suas ideias, ou por terem sido eleitas para o exercício e o cumprimento de funções democráticas. Entendo que esta é uma das primeiras obrigações de qualquer pessoa digna.”

Até muito breve, com toda minha estima.


Emigdi Subirats



domingo, maio 13, 2018

CARTAS PELA LIBERDADE 4: Carta de Mireia Boya a Tamara Carrasco

Mireia Boya e Tamara Carrasco

 “Desde ontem que não tiro teu nome da cabeça”, carta de Mireia Boya a Tamara Carrasco
Carta da ex-deputada da CUP MIreia Boya a Tamara Carrasco, a mulher do CDR de Viladecans detida pela Guarda Civil espanhola

Estimada Tamara,
Não nos conhecemos pessoalmente. Eu mesma nunca estive em Viladecans, a tua cidade mas desde ontem que não tiro teu nome da cabeça. E quero dizer isso bem alto, repetir até não poder mais, até cair exausta se for preciso, porque hoje foi você a pessoa sequestrada por este regime infame, mas amanhã pode ser qualquer outra. E o grito é porque você é mulher e valente, pelo companheirismo, pelo compromisso, pela denúncia pública e pelo convencimento de que a República pode ser um lugar pelo qual vale a pena viver.
Tamara Carrasco, a dignitária mais combativa do Baixo Llobregat, lutadora pelos direitos e liberdades de todos em cada letra do teu nome. Que ninguém tente inviabilizar-te, nem desumanizar-te ocultando teu nome e reduzindo-te a uma titular anônima. Que os carniceiros não produzam sangue com o teu sofrimento. Tu és nós – e nós, daqui de fora, somos tu, porque todos somos Comitês de Defesa da República.
Cabeça muito bem erguida diante dos carcereiros, punho cerrado perante a inquisição. Pensa que tu representas mais de dois milhões de pessoas. Pessoas como tu, que naquele 1º de outubro, defendiam o direito de votar, que naquele 3 de outubro protestavam contra a violência policial, e que, dia após dia, em cada ação, exigiam a liberdade dos presos políticos e gritavam bem alto contra a vulnerabilização dos direitos fundamentais. Tu não estás só e jamais estarás.
Os desmandos continuam. Aquele regime podre, corrupto e violento nos está roubando a nossa gente – a gente dos bairros, dos povoados e das cidades que se movimentam. A gente dos movimentos auto-organizados, a gente da rua que batalha. Nos CDR ninguém manda, porque todos querem mandar nas nossas vidas. E não sabem que, quanto mais eles fizerem, mais nós faremos, porque não nascemos para renunciar a nada. Porque cortar uma flor – hoje, tu – não vai deter a primavera catalã.  
Com certeza mil pensamentos passam por sua cabeça, com relação aos teus entres queridos, e com certeza terás mil perguntas sem resposta com relação ao teu futuro. Não te preocupes. O “cuidemo-nos” não é apenas um slogan; é uma filosofia de vida que aplicamos 24 horas por dia. Estaremos com teus pais e amigos. E estaremos porque a unidade diante da repressão não é só necessária; é também a nossa força. Esperamos que essa unidade desperte mais e mais pessoas para te acompanhar, para denunciar tudo que estão fazendo contigo.
Vamos dar um basta ao fascismo de uma vez por todas. Chega da impunidade da extrema direita, que governa engravatada e pronuncia sentenças nos seus tribunais. Ontem fez 25 anos que assassinaram Guillem Aquilló; e por ti, também, não há nem esquecimento, nem perdão por cada minuto que te privam da tão sonhada liberdade. E a luta continua até a vitória, sempre, até que possamos te tirar daquela cela onde te trancaram, até que voltes para casa e, aí sim, possas me mostrar tua amada Viladecans.
Terroristas são eles. Terrorismo de estado, como se diz. Se eles ganham, perdemos todos. O protesto não violento, a desobediência civil, não são delitos e jamais podem ser. E que eles não pensem que vamos parar; estamos decididos a não nos curvarmos nunca mais. Agora nós nos levantamos. Resistimos – e resistiremos. Orgulho de todos aqueles que, como tu, são CDR. A nossa força é coletiva. A derrota deles está em querer nos individualizar. Somos o poder popular.
Lembre-se: estaremos todos diante do juiz e dentro da cela, até que tu sejas libertada. Sinta o nosso alento junto ao teu. Isso te sustentará nessas horas difíceis.
Milhões de abraços,
Mireia

sábado, maio 12, 2018

CARTAS PELA LIBERDADE 3 - Carta de Elisenda Palunzie a Jordi Sànchez

Elisenda Palunzie e Jordi Sànchez


Jordi:

O Vilaweb me oferece a possibilidade de te escrever com a certeza de que poderás ler esta carta logo, porque recebes, toda semana, o diário impresso  que publicam em PDF. Não queria deixar de aproveitar esta oportunidade. Permita que eu te agradeça pela mensagem digna e nobre que me fizeste chegar às mãos, assim que fui eleita presidente da ANC (Assembleia Nacional Catalã), e que também fizeste chegar ao novo secretariado da entidade, na qual agradeces o apoio material e moral que pudemos oferecer enquanto continuas na prisão, mas reitera que não nos esqueçamos de que o objetivo da Assembleia é trabalhar pela independência do nosso país. Quanta dignidade, e também quanta inteligência política há nessa mensagem! Minha intenção é que me orientes ao longo de todo o caminho que agora começo a palmilhar, e que orientes também todos os ativistas da Assembleia, junto dos quais prosseguimos na caminhada iniciada por nossa entidade, há seis anos, e que ainda não nos fez chegar ao nosso destino.
As circunstâncias, no entanto, ainda não me permitiram conversar com as pessoas que me antecederam no cargo; pois essas duas pessoas, que são a Carme e você, estão na prisão por terem permitido a este nosso povo exercer o direito à autodeterminação. Um direito universal, o primeiro de todos os direitos civis e políticos reconhecidos pelas Nações Unidas. Um direito por cujo exercício vocês dois trabalham há muitos e muitos anos. Tenho quase certeza de que não se recordará, porque na época eu era muito jovem e você já se tornara uma referência pública dessa luta, como porta-voz da Crida (“Grito”); numa determinada ocasião tínhamos conversado em algum encontro das entidades que participavam da campanha Freedom for Catalonia, durante os Jogos Olímpicos de 1992 (eu participava desde o tempo da FNEC, Federação Nacional dos Estudantes da Catalunha), ou em algum ato público organizado pela Crida. Vinte e quatro anos depois nos reencontrávamos; juntos, fizemos atos em defesa do referendo da autodeterminação, durante a consulta interna que a Assembleia organizou, em julho de 2016.
A causa pela qual tantos de nós trabalhávamos há tanto tempo estava prestes a se tornar realidade. Creio que realizamos muito bem aqueles atos; nos complementávamos e nos entendíamos bem. O fato é que, juntos, todos nós ajudamos a concretizar o referendo de 1º de outubro de 2017 – um ato de inteligência coletiva, de coragem, de auto-organização popular, de defesa do feito democrático... O mais importante que o nosso povo já fez até hoje, e que haverá de ser a base sobre a qual será construída uma República Catalã, justa e para todos.
Aqui na Assembleia, pode estar certo de que não nos esquecemos. Que trabalharemos sem descanso para denunciar a injustiça, a violação flagrante dos direitos fundamentais do ser humano, representada pela sua prisão preventiva e pelas acusações falsas que formulam contra todos vocês que continuam presos. Na defesa dessa causa, nos somaremos a todas as pessoas, venham de onde vierem, compartilhem ou não dos nossos objetivos políticos. Mas também pode estar certo de que colocaremos toda nossa energia e todas as nossas qualidades (lutando também para manter sob controle os nossos defeitos) a serviço do objetivo pelo qual nossa entidade foi fundada, que não é outro senão a independência do nosso povo. República é liberdade. Luz nos olhos e força nos braços! Viva a Catalunha!

Elisanda Palunzie

sexta-feira, maio 11, 2018

CARTAS PELA LIBERDADE 2 - Carta de Ruben Wagensberg a Jordi Cuixart



Ruben Wagensberg e Jordi Cuixart


Meu caro,

Não quero te perguntar como estás, porque sei, apesar de tudo, que estás bem e forte. Por te conhecer bem, não te imagino de nenhuma outra maneira. Até hoje vinha resistindo à ideia de te escrever – e a primeira coisa que quero fazer é me desculpar por isso. Acho que, para mim, escrever significava aceitar aquilo que, mesmo a essa altura, muitos de nós ainda não conseguimos assimilar.
Uma coisa, porém, tenho gravada como um tesouro em minha memória: o dia em que fui com a Lara à casa da tua mãe e do teu pai – e consegui falar cinco minutos contigo por telefone. Sempre digo ao Pol Altayo (que craque!) que quero voltar logo lá, pois parece que se come muito bem. E, de quebra, quero ver se te pego na linha outra vez.
Em vez de escrever cartas, o que sei que andei fazendo regularmente, e logo que saíres daí poderás ler, é mandar mensagens via Telegram normalmente. Toda semana. Como sempre fizemos. Para comentar um pouco os acontecimentos, compartilhar algum tweet de alguém cujos dedos coçaram, te explicar em que confusões estamos metidos neste momento, e que não são poucas, ou simplesmente para nos perguntarmos como estamos. E saber que somos.
Temos este costume desde o dia em que nos conhecemos naquele bar da Rua Verdi. Poucas semanas depois, tu e a Txell vieram me visitar na Grécia. Recordo muito aquela manhã que passamos conversando com as pessoas que estavam presas no campo de refugiados – militarizado – de Vassilika. Te mando junto a fotografia!

Visita de Jordi Cuixart e Ruben Wagensberg a um campo de refugiados na Grécia

Quando acabamos, fomos ver as companheiras da Comunidade Eko. E lá conheceste o Ahmed, um mini-Cuixart em potencial, de treze anos. Já te disse várias vezes que o Ahmed me faz pensar muito em ti. Sempre sorridente, ainda que preocupado com todos, sejam ou não os seus. No capítulo de “Vidas interrompidas”, da TV3, do qual foi protagonista, dizia: “Em casa eu aprendi que, se tem uma sacola de comida, não como até que alguém mais tenha comido.” Em primeiro lugar, sempre, compartilhar. Este é o verbo que melhor define vocês dois. E os dois são pessoas importantíssimas em minha vida, duas referências.  E tive a infelicidade de ver os dois serem trancafiados.
Sabe de uma coisa? Imagino que alguém te tenha dado essa notícia antes de mim, mas o fato é que o Ahmed e sua família conseguiram, por fim, chegar a Frankfurt, onde ele conseguiu se encontrar com seu irmão Mohammed, depois de cinco anos. E agora que o pesadelo acabou, começam uma nova vida, longe da miséria na qual foram obrigados a viver nos últimos anos, porém ainda com um longo caminho pela frente, nesta Europa tão pouco preparada para coisa nenhuma.
Egoísta que sou, sinto tua falta, mas não posso deixar de me alegrar (sim, é estranho) ao pensar que tem muita gente aproveitando a tua companhia. A Txell nos explicava isso, e há pouco tempo soubemos, de viva voz, pelo Jesús. Sempre fazemos essa piada: imaginamos você entrando no refeitório da prisão e todos os presos levantando os braços e gritando: - Jordi! Vem aqui! Vem aqui com a gente! Sinto-me feliz em saber que muitos, aí dentro, têm tido a mesma sorte que muitos outros terão um dia: a de descobrir e de conhecer uma das melhores pessoas do mundo.
Enfim, não vou me alongar mais, pois deves ter mil cartas para ler. Nos primeiros dias, o chat do nosso Telegram dizia: “Última conexão recente.” Depois passou a dizer: “Última conexão há algumas semanas.” Agora, ele me indica que a tua última conexão foi “há muito tempo”. Sim, faz tempo demais que sentimos tua falta. Mas estamos plenamente convencidos de que logo voltaremos a ter-te ao nosso lado.

Te amo. Te amo muito!

Ruben Wagensberg


quinta-feira, maio 10, 2018

CARTAS PELA LIBERDADE 1: Carta de Jaume Ciurana a Joaquin Forn

Jaume Ciurana e Joaquim Forn


Na Catalunha, nove pessoas - entre parlamentares, políticos e líderes de destaque na luta pela democracia - estão presos por ordem do governo espanhol, após a Catalunha ter realizado um referendo popular que decidiu pela independência do país. Outros estão exilados, entre os quais o presidente eleito, Carles Puigdemont. 

"Cartas pela Liberdade" é um espaço aberto pelo diário digital Vilaweb para "expressar solidariedade aos presos políticos e exilados - e, ao mesmo tempo, para que se saiba quem são eles", segundo o diário.

Resolvi traduzir essas cartas neste meu espaço, que andava um tanto esquecido ultimamente, e compartilhar as traduções no Facebook.

Por que decidi fazer isto? Por causa de uma palavra: ideal. Ter ideais é não só importante como sagrado na vida de alguém. E as pessoas que vocês conhecerão aqui são idealistas, não ideólogas. Acreditam no serviço ao próximo, acreditam num país que há décadas não os deixam construir, entre tantas guerras e imposições.

Se ideal é o que falta no mundo, vamos nos espelhar nessa gente e em sua grandeza para construirmos, cada um a seu modo, uma forma melhor de se viver neste planeta.

I. Carta de Jaume Ciurana a Joaquin Forn

"É preciso combater, com vontade, a 'aparência de normalidade' que te querem impor os teus carcereiros"


Jaume Ciurana e Joaquim Forn nas montanhas, na juventude



Benvindo, Quim!

Hoje de manhã, no alto de Collserola, pensei em ti mais uma vez. Aliás, tenho feito isso com frequência, talvez para lembrar a mim mesmo a obrigação moral, emocional, racional e política de não esquecer a injustiça que vem sofrendo. Os dias passam, a vida continua, o sol surge a cada manhã – e é preciso combater, com vontade, a ‘aparência de normalidade’ que te querem impor teus carcereiros e aqueles que, com seu silêncio vergonhoso, te condenam. Hoje, um dia de visibilidade excepcional – pelo menos na hora em que aqui estive – pude enxergar, bem ao norte, os Pireneus bastante nevados, com o majestoso Monte Puigmal. E pouco depois, olhando mais para o levante, a silhueta - mais difusa - da Serra de Tramontana, em Maiorca. Num só golpe de visão, avistei os cumes dos Pireneus e seus contrafortes, seu amado maciço de Montseny, Monserrat, a planície de Vallès, as colinas de Maresme, o plano de Barcelona, o Mediterrâneo e Maiorca.

É neste preciso momento, diante de horizontes amplos e do ar limpo e transparente, que penso em ti. O país inteiro, tão perto e tão longe. Assim como tu. Nunca, como agora, estiveste tão perto das pessoas que te estimam – e tão longe, fisicamente, da Laura, da Anna, da Beta e da tua mãe, de todos nós. Não sei se tens consciência disto, mas penetraste nos lares e nos corações de milhares de catalães. Queriam te ver longe dos teus e conseguiram exatamente o contrário: a cada vez os teus são mais numerosos, a cada vez eles te sentem mais próximo e estabelecem contigo aqueles laços invisíveis que unem as pessoas por toda uma vida. Como daquela vez, já faz mais de 30 anos, que resolvemos escalar o Montblanc. Lembra? Estávamos amarrados com cordas, o dia também era limpo e claro, mas o frio e o vento nos fizeram recuar na aresta final e nos impediram de chegar ao cimo. Confiamos a vida um ao outro e esse gesto consolidou nossa amizade.

Uma amizade forjada nos anos da universidade, quando organizamos a Fundação Nacional dos Estudantes da Catalunha (FNEC), da qual você foi presidente, e também na Juventude Nacionalista da Catalunha, que existe até hoje e sempre teve, como eixos condutores, as paixões que compartilhamos: a Catalunha, Barcelona e as montanhas. Tuas profundas convicções cristãs te levaram a tomar o caminho da objeção de consciência, ainda que incerto naquela época. É que sempre foste foi um homem tranquilo. E mais importante que isto, um homem que transmite tranquilidade, que emana serenidade. É por isso que me indigno e me rebelo – aí sim – quando vejo gente que não te conhece nem um pouco te qualificar como uma pessoa violenta! De todas as mentiras que tenho ouvido nos últimos anos, esta é, talvez, a que me faz mais mal.

Mas não quero que sofras com isso. Não me deixarei vencer pela raiva; seria o mesmo que me deixar vencer pela mediocridade daqueles que te prenderam. E não o farei tampouco porque sei que tu os perdoarás, se é que já não o fizeste. Mas há outra coisa que me dói particularmente: o silêncio de alguns que foram nossos companheiros, teus e meus, durante muitos anos, na Câmara Municipal de Barcelona. Gente que, apesar de pensar diferente, em algum momento nos pareceu que se encontravam naquela faixa – às vezes mais larga, às vezes mais estreita – entre o simples conhecimento e a amizade.
Alguém poderia dizer que a vida é um conjunto de alegrias e decepções, e que a felicidade consiste em ampliar as primeiras e esquecer as demais. É o que a gente tenta fazer a cada dia. Essas pessoas não conseguirão fazer com que as sementes de ódio que espalham germinem em nossos corações. Este será o maior de seus fracassos.

Mesmo acostumados ao imediatismo, aos 140 caracteres, o simples ato de escrever cartas nos permite um momento a mais de pausa, de reflexão. E no caso desta, que tem a vocação de se tornar pública, temos também a oportunidade de explicitar coisas que, normalmente, não escreveríamos. É por isso que tenho necessidade de te agradecer pelas muitas coisas que compartilhamos, especialmente pelos anos vividos na Câmara Municipal, pela oposição ao governo. E por sua passagem – efêmera, mas que deixou marcas – pelo Governo da Catalunha, como Conselheiro do Interior. Sobretudo no momento em que você liderou a resposta da cidadania a um dos maiores e mais trágicos embates que nossa cidade já viveu: o período em que Barcelona era assombrada pela dor e pelo horror dos atentados. Sua serenidade e confiança no trabalho dos agentes policiais, comandados pelo Major Trapero, renovaram nossas esperanças, nos reconciliaram com a condição humana.

Toda vez que vou te ver, ou que pergunto como você está às pessoas te visitam na prisão, a resposta é sempre a mesma: está bem, forte, com coragem. Mas agora chega! Não perguntarei mais isso a ninguém, e não quero que ninguém mais me pergunte, até que a resposta para “como estás” não possa ser outra senão LIVRE.

Um grande abraço
Jaume

P.S.: Você pode se orgulhar da Laura e das suas filhas. O amor, a fortaleza e a dignidade com que vêm vivendo esta situação são simplesmente admiráveis.