terça-feira, abril 02, 2019

MUNDO, VASTO ESPELHO

Vitoria Strada como Júlia Castelo, em Espelho da Vida
Foto: Divulgação TV Globo

Maurette Brandt

Não é preciso uma rima de Drummond para falar, com ternura, de Espelho da Vida -  história que acaba de virar sua última página na segunda-feira, 1º de abril.  Mas, neste caso, procede: me ocorreu que, nessa obra de rara felicidade da autora Elizabeth Jhin, tudo é vasto, imenso, imensurável – e lá vai junto o nosso coração, combalido e esperançoso, pelos caminhos espirituais e humanos que se desenrolaram de forma tão delicada diante de nós, nos últimos meses.

Confesso minha predileção pelas histórias transcendentes. Mas Espelho da Vida foi além de qualquer expectativa. As imagens cinematográficas - pois afinal havia ali um filme - e cadenciadas de modo a respeitar o ritmo de uma narrativa invulgar, tocam em muitas de minhas melhores recordações de cinéfila. Em nada houve pressa, e sim apuro. Tempo. O tempo que passa e nos faz sentir sua passagem. O tempo não vivido que evoca lembranças inalcançáveis. O tempo que passa mais belo nas cidades históricas mineiras que serviram de cenário, em toda sua exuberância secular, para a história vívida de Júlia Castelo. Até um muro que tive a petulância de adotar como meu, localizado em Tiradentes, com suas pedras nuas e rejuntes avermelhados, estava sempre em cena, exibindo as marcas do tempo que tanto amo. E, além de tudo, há a presença constante da música como personagem, profunda, precisa em todos os tons e nuances. A trilha incidental, então, de uma melancolia absolutamente contundente, fazia com que jamais nos esquecêssemos do sofrimento e da névoa que envolviam Júlia Castelo e seu trágico passado.

Júlia, "a mais linda flor colhida antes do tempo", como rezava o epitáfio na sepultura de 1932, vivia na cidade mineira de Rosa Branca e morrera com um tiro no peito, disparado - segundo a lenda - pelo noivo, Danilo Breton. Mais de 80 anos depois, uma caixa contendo um diário com  páginas arrancadas e alguns objetos pessoais é o mote para que sua história se espalhe pelas vidas de várias pessoas do tempo presente. E no centro disso estudo está Cris Valencia, uma atriz que chega à cidade com o noivo para descobrir,  por caminhos incompletos e mensagens cifradas, que é, possivelmente, a reencarnação da jovem assassinada. 

Como não nos envolvermos nos pequenos grandes mistérios, nos olhares perdidos, incisivos ou vivazes de personagens como André, Margot, Gentil, Vicente, Padre Luiz, a Guardiã Albertina? Seria injusto não mencionar a lista inteira, mas, sinceramente, não há como ficar indiferente à grandeza dessa estirpe particular de atores – Emiliano Queiroz, Irene Ravache, Ana Lúcia Torre, Reginaldo Farias, Suzana Faíni, Vera Fischer - que fizeram e fazem história em nossas vidas. Não há como não sorver cada expressão no rosto soberbo de Irene Ravache, não se emocionar com sua interpretação, ou não render-se à absoluta emoção de vê-la em cena duplamente, como a doce e ampla Margot e na pele da exuberante e contraditória Hildegard. Nem tampouco há como esquecer a insuperável Suzana Faini, perfeita em todos os sentidos. Só Suzana tem o olhar certo, de aço cortante ou de ternos mares, para marcar com precisão cada momento das personagens – no caso, a Guardiã desencarnada, em busca de redenção, e a inflexível Albertina dos anos 1930.

Vitoria Strada vive Cris e Júlia. Bem poderia ser uma escolha de Alfred Hitchcock para um filme requintado: a beleza singular e estonteante, de completa delicadeza e presença intensa, revela uma atriz de múltiplos recursos e luz própria, mesmo quando velada por filtros quase mágicos de iluminação, ou quando atirada à realidade cotidiana. Traz em si o enigma, a flor da liberdade, o feminino e a fortaleza. Sua essência está em toda parte, assim como as rosas brancas que simbolizam a cidade e os sentimentos e dúvidas que transbordam de todos os lados, quando a trama começa a tomar forma diante de nós.

A Ana e a Piedade de Júlia Lemmertz comovem em sua delicadeza e profundidade.  A atriz, que em certos momentos até assusta, de tão parecida com a mãe Lilian, deu a cada personagem o seu exato peso e medida. Angústia e doçura, decisão e firmeza,  humanidade e força se alternam para revelar duas mulheres bem distintas, mas ambas ricas em sentimento e densidade. Inesquecíveis.

Não se pode esquecer também, por um segundo que seja, a presença obrigatória, compulsiva e terrível de Isabel, personagem levada aos piores extremos por Aline Moraes, numa atuação absolutamente visceral,  a meu ver sem paralelo na já ótima trajetória da atriz. 

Vale ainda destacar João Vicente de Castro, um verdadeiro susto de ator, sim senhor. Foi a grande surpresa em várias dimensões. Quem me vê assim cantando não sabe nada de mim, já dizia Suely Costa na letra de “Dentro de mim mora um anjo.”  Fiquei de queixo caído com o sensível e incontrolável Alain, em contraposição à frieza calculada e obsessiva de Gustavo Bruno. Essa atuação gigante, para mim, muda tudo: o ator que nele vive é infinitamente maior do que o apresentador descolado e inteligente que me acostumei a encontrar nas noites da GNT. 

Houve momentos em que, diante de uma e outra cena particularmente tocantes, eu não me cansava de pensar no privilégio que é estar, por exemplo, diante da Gentil de Ana Lucia Torre, no momento em que confidencia seu amor a um bêbado e desacordado Américo, personagem de Felipe Camargo. Quanta nobreza e generosidade de atores desse quilate em compartilhar conosco momentos assim!

No aspecto da espiritualidade, Espelho da Vida esbanjou conhecimento de causa, informação clara e leveza, mesmo nos momentos mais críticos.  O recurso de dar aos personagens da vida presente e da passada o mesmo rosto é indispensável na TV, não só para a compreensão das múltiplas camadas da história, mas também para criar empatia no espectador.  Toda a trama, mesmo percorrendo o terreno acidentado das paixões humanas, é conduzida com suavidade, elevação – valorizando todos os matizes de cada personagem, sem estereótipos, e com a honestidade básica de mostrar o lado bom, o mau, o péssimo, o horrível, o contraditório... já que todos, afinal, são seres humanos, encarnados ou não, em busca de sua jornada pessoal.

Mesmo com o notável último capítulo, Espelho da Vida não acaba fácil dentro da gente.  Viver em Rosa Branca todo esse tempo, entre vislumbres do passado, desencontros no presente, com gente que abriu o coração e gente arraigada na mágoa e na maldade, foi como abrir uma porta dividida entre realidade e ficção, dentro da nossa casa interna, e mergulhar na história. Como se fosse possível entrar na livraria da Margot, no quarto de figurinos da Josi, na casa da arquivilã Isabel,  nas planilhas de filmagem do incansável Bola, no computador do atormentado e suave Alain. Ou, nas pegadas do passado, penetrar na mansão dos Castelo - ora espectral, com seus portões enferrujados, ora resplandecente, com cortinas e móveis impecáveis. Aquele dia a dia em duas épocas se pregava em nós como se fosse real. E, por isso mesmo, era real.

Espelho da Vida foi um completo acerto do início ao fim, arrematado com apuro poético e precisão dramatúrgica. Aguardei o desenlace como profissão de fé: era preciso testemunhar, na hora e ao vivo, a conclusão da nobre missão de Cris Valencia, que aceitou enfrentar as incertezas do passado para viver o presente sem pesos ou pendências. Se isso parece papo de quem acredita, saibam que é mesmo. Mas como não acreditar em Espelho da Vida?

Confesso mais uma coisa: terei saudades.  Um projeto fascinante como este, que aliou beleza cênica, atuações inesquecíveis, cenários naturais inacreditáveis, arquitetura histórica grandiosa, caracterização de época perfeita, fotografia espetacular, trilha musical delicadíssima e uma poética que uniu a dramaturgia à espiritualidade com rara competência, vai ser difícil de esquecer.