sábado, setembro 27, 2008

My old blue eyes...

Paul Newman - Foto: Arquivo/Press

Este era o "meu" sorriso confiante, complemento quase indispensável aos olhos azuis feitos do melhor mar do universo. Este era o homem mais emoldurado em meus sonhos de adolescente, a criatura confiável que eu respeitava e amava numa redoma, da forma estranha e intensa com que os fãs de cinema amam seus atores. Este era o exemplo de ser humano que cultivava uma dignidade sem limites, uma força solidária fabricada pela dor da perda de um filho, uma humanidade que só fazia ampliar-se.
No impulso da notícia de sua morte, no piloto automático que des-controla a falta que já faz uma era de esperanças boas, combates sadios e sonhos românticos também, por que não?, escrevo sobre a falta que ele me faz. A mim, que só o vi com os olhos mergulhados na tela. Que só o li com a alma cheia de confiança, taí um sujeito decente, que não é só um par de olhos bonitos e o sorriso incandescente que será difícil apagar da memória. A enorme falta que já faz esse personagem, que dignifica a tão combalida sociedade americana, para tanta gente, próxima ou não. Só de saber que ele existia, eu sentia uma espécie de conforto interno. Era como se pensasse: ele está lá, bonito e digno como o vi em Estrada para Perdição, engolindo tranqüilamente, com sua arte segura, profunda, gente do calibre de Tom Hanks e Jude Law.
A beleza de Paul Newman, que escolheu o caminho da verdade, da firmeza e dos princípios, é muito maior do que os seus olhos azuis de mar, maior que a idade, do que qualquer idade. A beleza de um homem que escolheu uma companheira e viveu para ela, atravessou os anos de mãos dadas com ela, é bem mais intensa do que o visível. Por isso eu amava Paul Newman com reverência e respeito, entre sonhar com seus olhos azuis de um Butch Cassidy montado na bicicleta e gritando "Etta Place! My Etta Place!" ao redor da bela Katharine Ross e acompanhar sua paixão por velocidade (como eu morria de medo de que se acidentasse!), seus comoventes discursos humanitários, seu interesse permanente pela juventude e em viabilizar um mundo melhor para ela.
Eu amava Paul Newman com o direito impossível de fã, na salva de prata da distância próxima com que a tela grande nos ilude. Olho para ele em qualquer de suas fases e sinto o mesmo calor, a mesma ternura, a mesma vontade de ter tido, um dia, o instante de visitar-lhe os olhos em pessoa. Hoje, tudo pesa porque aquela fortaleza que fazia parte dos meus tesouros pessoais se foi. Mas como não se perderá tudo o que ele me ensinou e me fez ver nessa vida, com sua hombridade, arte e beleza, estou aqui para homenageá-lo com as palavras mais sinceras que consigo encontrar, e revivê-lo no azul sem fim que me invade o coração neste momento.
Obrigada, Paul, por ter existido para o mundo, para mim e para o cinema - este senhor da magia que, felizmente, fará com que você continue a existir para muitas gerações que virão.

sexta-feira, setembro 26, 2008

Che gelida manina...

Giacomo Puccini

Convenço-me de que o povo, aqui no Brasil, gosta mesmo é de falar. Falam quando a coisa é boa, falam quando é ruim, falam de todo jeito. Ao assistir, no dia 19, à última récita de La Bohème, a escolha do Teatro Municipal para não deixar passar em branco o ano Puccini nesses tempos de vacas magras, concluí que é melhor fazer ouvidos moucos à criticagem geral e escutar a música.
Em matéria de dificuldades, o Municipal é graduado e pós-graduado. Não é de hoje que as autoridades abandonam o teatro à própria sorte, como se ele fosse capaz de, milagrosamente, fazer brotarem recursos para atender a gregos e troianos, manter temporadas de diversidade européia, fazer manutenção e tudo o mais que é necessário. É claro que isso não acontece, e a instituição tem que fazer das tripas coração para não deixar a peteca desfolhar-se no chão.
A Bohème saiu, apesar dos pesares. E foi digna das comemorações do ano Puccini, apesar da falta de quase tudo. Orquestra, regente, elenco e técnica fizeram o possível e o impossível para realizar uma produção de alto nível - e conseguiram.
Reclame quem quiser da alternativa, por sinal muito bem aproveitada e interessante, de utilizar projeções de quadros famosos na boca de cena e à guisa de cenários, durante a ópera: se o teatro não tem recursos para construir cenários mirabolantes, por que não criar? Gostei. Ficou bonito, desperta a curiosidade pelas obras, dá um visual requintado. Muito melhor do que certos cenários, no passado, feitos por artistas plásticos afetos a instalações de funcionalidade e estética duvidosas. Há muito, muito tempo mesmo, que não se vê alguém do nível de um Gianni Ratto fazendo algo no Teatro... Acabou que a Bohème e os quadros se entenderam muito bem e a coisa funcionou, no aspecto cênico.
Em termos de música e interpretação, que é o que mais interessa quando se fala em ópera, não tive do que me queixar. Sou grande fã de Fernando Portari e adorei vê-lo novamente em cena. O desempenho vocal foi muito bom e, como ator, também não fez feio, embora eu às vezes tenha a impressão de que há algum tempo vem se desleixando um pouco de si mesmo e da carreira. Em alguns momentos, talvez os mais marcantes, esteve inteiro e doou-se muito ao papel; em outros, porém, me pareceu algo distante. Já Rosana Lamosa, cujo timbre não me agrada tanto, foi se intensificando a partir do segundo ato. Sua "Mi chiamano Mimì" foi sofrível, mas a melhora foi sensivel até o ato final, no qual ambos foram brilhantes. Rodrigo Esteves, Homero Velho e Luiz Ottavio Farias - como Marcello, Schaunard e Colline, respectivamente - formaram um trio coeso, qualificado e de bela sonoridade.
Há, porém, um reparo a fazer: a idéia de transformar a sublime ária de Musetta num arremedo de Marilyn Monroe cantando "Diamonds are a Girl's Best Friends", com dois bailarinos estranhíssimos e coreografia grotesca, foi realmente um desastre. Que me desculpe o diretor de cena Francesco Maestrini, mas aquilo foi uma palhaçada, não tem outro termo. A reação do público foi condigna, diga-se de passagem, no dia em que assisti; perpassavam a cena murmúrios de escárnio. A intérprete Gabriella Pacce também ficou prejudicada, pois como cantar bem, sendo jogada dum lado pro outro como se fosse uma corista? Convenhamos,
um pouco de respeito é bom e o Sr. Puccini gosta, assim como nós, ali na platéia. Foi realmente lamentável que, por causa de uma pantomima mal engendrada, um dos momentos mais expressivos da ópera tenha sido perdido, reduzido a galhofa.
Mas olhando para a cena, do alto da minha galeria G45, não pude deixar de pensar em outra Bohème, de 1981, idealizada por Franco Zefirelli para o Metropolitan Opera. Não, não se trata de estabelecer comparações; essa nossa Bohème acabou por me remeter àquela, a primeira que vi, ainda que em vídeo, e que nunca esqueci. De fato, não há como apagar aquela delicadeza e despojamento que tão bem apresentavam o tom de denúncia social sugerido por Puccini ao retratar toda aquela pobreza em lastimável condição, sem assistência nenhuma, nos bairros boêmios e pobres de Paris.
Pensei na fragilidade de Tereza Stratas, no romantismo vívido de um Josep Carreras no auge de sua forma, na presença de Joseph Morris, nos cenários, figurinos, na música que, como disse o meu vizinho de poltrona, "comove muito, não tem jeito..."
Em março deste ano, Zefirelli foi homenageado no Metropolitan, no entreato da 347a. apresentação de "sua" Bohème, com elenco liderado por Angela Ghiorghiu. Uma montagem que já dura 17 anos e permanece fresca, adorável, perfeita para traduzir Puccini!
Guardadas as proporções, a Bohème do Teatro Municipal marcou presença e demonstrou que, quando os verdadeiros artistas resolvem arregaçar as mangas, sempre conseguem produzir qualidade e beleza.
Tenho a certeza de que o mestre aí em cima, de modo geral, aprovaria.