terça-feira, agosto 26, 2014

Salomé

Eliane Coelho em Salomé
Foto: Divulgação - Crédito: Eduardo Moraes

Hoje vejo pela primeira vez Eliane Coelho no palco. Ouvir, já tinha ouvido; vídeos, já tinha assistido. Mas ver, ver mesmo, acontece agora. É 20 de agosto, pré-estreia da ópera Salomé para convidados, no Theatro Municipal do Rio. E muita coisa está prestes a acontecer comigo, embora eu ainda não saiba.
Cortina fechada, olho curiosa para quatorze cadeiras douradas, enfileiradas no proscênio, tentando adivinhar o que virá.
Logo um palco habilmente vestido - e agigantado - com véus num cinza diáfano que caem do urdimento ao chão, pontilhados por lâmpadas redondas de vários tamanhos, em posições estratégicas, se revelará, junto com a poderosa abertura. O clima toma conta de mim instantaneamente.
Desde o primeiro acorde, a música de Richard Strauss contagia pela força que traz. Em Salomé isso não é diferente; a inquietante beleza assinala todos os climas na intensidade certa e com imensa dramaticidade. 
Os guardas do palácio do tetrarca Herodes Antipas falam sobre o profeta Jochanaan (João Batista), preso na cisterna por ter denunciado o casamento do tetrarca com a própria cunhada, Herodíade, que é festejado naquela noite com um grande banquete.
Os temerosos guardas cobrem a tampa da cisterna com as cadeiras que estavam no proscênio. E falam também sobre os dilemas da princesa Salomé, filha de Herodíade, que é objeto dos olhares lascivos do padrasto e dos suspiros sinceros do chefe da guarda, Narraboth. 
Eis que Salomé entra em cena, na pele de Eliane Coelho. Ou vice-versa.
E o palco, antes todo em cinzas e negros, se inunda do amarelo de seu vestido. 
Mas a cena se inunda, mesmo, é de Eliane. 
Uma mudança sutil, mas incisiva, se faz sentir no próprio ar respirável ao primeiro olhar que a adolescente Salomé desfere em cena;  um simples olhar, entre irritado e enfadado, dá a justa medida da força dramática que crescerá com a personagem e nos manterá, a todos, completamente rendidos.  Eliane Coelho é descomunal em talento, técnica e intensidade. Se a voz tem sutilezas e calibres os mais variados, de instigante beleza, o drama é uma sucessão de sustos emocionantes, de um poder eletrizante. Sua Salomé tem uma nota de lirismo comovente, que persiste imbricada no drama e pontua, até o final, as aparentes contradições que acabam por desnudar a verdadeira e humana face da mulher Salomé.
Embora seja muito difícil desgrudar os olhos e ouvidos dela, todo o elenco tem muitíssimos méritos e a direção consegue um resultado bastante consistente e bem acabado. No papel do tetrarca, o irlandês Paul McNamara tem presença marcante e excelente forma vocal. O consagrado Licio Bruno encarna um Jochanaan atormentado, profundo e seguro musicalmente. E o Narraboth vivido por Ivan Jorgensen é de uma delicadeza interpretativa incrível. A voz, linda. Carolina Faria é uma Herodíade algo espectral e ao mesmo tempo icônica, num figurino escandalosamente genial, concebido pelo não menos genial Marcelo Marques. A direção de André Heller-Lopes cria uma dinâmica interessante, que permite a expressão dos intérpretes e, ao mesmo tempo, favorece o ritmo tenso da trama.
Voltando a Eliane Coelho - como fosse possível não voltar! -, sua transfiguração artística no desenvolvimento do personagem é impressionante. O contato com o sentimento do amor e a impossibilidade de sua realização amadurecem Salomé num curtíssimo espaço de tempo. Aos poucos, a adolescente ligeiramente revoltada do início da ópera vai se transformando numa mulher marcada pela tragédia e decidida a cumprir o seu destino. E tudo que acontece no nível da interpretação é secundado por um desempenho vocal estonteante. Eliane Coelho é uma daquelas raras artistas que não têm limites ao mergulhar num papel. E no caso de Salomé, pródiga em momentos que testam todos os possíveis limites, essa envergadura é continuamente exposta - como na dança dos sete véus, que revela mais uma faceta inesperada de um talento sem igual. Com que ousadia e competência Eliane se entrega ao que a cena lhe oferece para explorar!
Os figurinos criados por Marcelo Marques revelam todo seu esmero, conhecimento e arte. Salomé é vestida em tons absolutos - amarelo, branco. Sempre num volume pródigo e ao mesmo tempo fluido, eloquente em cena. Na dança dos sete véus, a roupa integra a coreografia em efeitos de rara beleza cênica, tal a forma com que emoldura os movimentos da personagem. É um momento revelador, tomado por uma magia própria, surpreendente mesmo.
Na cena final, o branco despojado é perfeito para receber o sangue que tinge a dor transfigurada, o misto de sofrimento e prazer que toma conta de uma Salomé que vai além dos mistérios do amor e da morte.
Vale destacar também o figurino de Herodíade, que é parte integrante da composição da personagem e a torna uma figura como que saída de contos de fadas, quase um recorte que flerta com o absurdo e empresta à cena um elemento um tanto surrealista, talvez.
Salomé é sem dúvida um grande acerto. Reúne elegância, rigor musical, beleza, drama. E Eliane Coelho no auge de todas as qualidades artísticas que a tornam uma diva de verdade. Só mesmo uma diva assim consegue nos levar àquele terreno movediço e especial em que se consegue idealizar o artista sem perder a conexão com sua parcela de carne e osso.
O que mais posso dizer senão mil vezes bravo?
Li em algum lugar que é a última vez que canta esse papel. Que pena.
A personagem Salomé sem dúvida sentirá falta dessa sua mais que perfeita tradução.





domingo, agosto 17, 2014

Casa de Cômodos - Carne, osso, sangue nas veias

Foto: Divulgação

Uma costureira, uma família de serviçais negros, um português radicado no Brasil, outro recém-emigrado. Gente comum que divide uma casa de cômodos.
Ambientada com precisão, a casa ocupa a caixa cênica tradicional com despojamento, paleta sóbria e uma iluminação tensa, que filtra com paciência os desabamentos progressivos que estão prestes a ocorrer diante dos nossos olhos.
É assim que começa Casa de Cômodos: dizendo logo a que veio. A beleza visual que envolve cenário, luz, figurino e expressão dos atores é o único respiro a que um público completamente hipnotizado tem direito, antes de testemunhar um engenhoso exercício de monstruosidade humana, finamente articulado por uma direção de mestre e alicerçado num elenco absolutamente consistente. Em Casa de Cômodos, que acaba de encerrar sua contundente temporada no Solar de Botafogo, no Rio, nada é o que se espera. Acima de tudo, é preciso estar atento e forte.
Marcelo Marques nos oferece uma rara oportunidade de assistir a um bom teatrão; trabalha como ninguém as minúcias, refina, refina, refina. Sua bagagem como cenógrafo e figurinista premiado, ator e homem de teatro acima de tudo, é visível a olho e alma nus em cada entrelinha, em cada marcação, em cada movimento da luz no espetáculo.
Casa de Cômodos restaura nossa fé no teatro. Sim, no teatro que aprendemos a amar e respeitar ao longo dos anos, quando encenado como projeto de vida. Teatro amalgamado com paciência e delicadeza nos menores detalhes. Teatro como há muitos, muitos anos, não se vê por aqui.
O texto de Cecília Terrana se insere muito bem no contexto do projeto “Sartre mais uma”; é uma história de pessoas de carne e osso, repletas de nuances, com as máscaras caindo a todo momento. Não há vencedores ou redenção. Mas nem por isso menos beleza. Personagens completos, reais, vividos por seis extraordinários atores, conseguem nos conduzir por suas várias camadas, atravessando virtudes, maldade, preconceitos, arrependimentos, boas e más intenções.
 Nenhum de nós escapa ileso à sucessão de horrores, todos eles tão espantosamente comuns e cotidianos, que os moradores da casa de cômodos desfilam no desenrolar da trama. Quem não viveu uma injustiça, não foi vítima de uma mentira, não conheceu gente capaz de tudo para salvar a própria pele?  Por isso é tão fácil a plateia perder, quase automaticamente, a noção de tempo/espaço e até esquecer que não está dentro da trama, mas é, ela própria, uma testemunha omissa das atrocidades desnudadas em cena. Cada ator... não, acho que neste caso é até perigoso individualizá-los; os atores, envolvidos por uma química rara e intensa, nos confrontam com essa sensação o tempo todo. É um incômodo que beira o irrespirável. Se a máxima sartriana é a progressiva decadência do projeto humano, nós, como plateia, estamos sendo compelidos a participar da decomposição daquelas pessoas e enfrentar nossa própria impotência diante de possíveis situações reais análogas.
E o que nos salva, a nós e aos personagens de Casa de Cômodos? A poética e a magia do teatro. Os risos e as lágrimas. Momentos sublimes, como a partilha de uma refeição pelo casal de serviçais Joaquim e Guiomar, de tal beleza que imediatamente remete à lendária cena de Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri em “Eles não usam Black-tie”, de Leon Hirszman, catando feijão. Ou a primeira cena do mesmo casal, entoando “Com minha Mãe estarei”, canção tradicional da Igreja e presença constante nas missas da década de 1960. Não há como esquecer a expressão do primo Francisco ao ver pela primeira vez a negra Guiomar, a aflição constante no rosto da costureira Elisa, sempre às voltas com o ofício de sobreviver em um mundo que nega a uma mulher sozinha qualquer direito. Ou o ódio contido do sapateiro Joaquim, incapaz de vencer o medo de se manifestar e perder casa e trabalho. Nem o canto de Oxum de Guiomar, em sua cena final. E muito menos a explosão da personagem Elisa, magistralmente transfigurada pela atriz Adriana Zattar, que nos desfere o golpe fatal, digno de Um bonde chamado desejo.
A beleza plástica de Casa de Cômodos, sempre emoldurada por uma luz que é um verdadeiro subtexto, de tão eloquente, é comparável à da montagem de Ragtime na Broadway, na década de 1990, que tive a sorte de assistir. É o desenho de cores, é a profundidade física das cenas, é a delicadeza de cada detalhe. Não há absolutamente nada fora de contexto em cena. Ninguém desperdiça coisa alguma, não há palavras, emoções ou atmosferas sobrando ou faltando.
Marcelo Marques nos deu o grande presente da temporada: orquestrou uma peça de teatro de verdade, com envergadura, começo, meio e fim. Não poderia sequer dizer que Casa de Cômodos é uma pequena joia; não, de modo nenhum. É o diamante Krupp da cena teatral carioca.