domingo, abril 03, 2011

Inconcebível

Orquestra Sinfônica Brasileira na Sala São Paulo
Foto: Divulgação

Que a nossa sofrida (e querida) Orquestra Sinfônica Brasileira já passou por poucas e boas, quem a acompanha desde sempre sabe. Crises financeiras que muitas vezes pareciam insolúveis, descaso do poder público e por aí vai. Mas a mancha de ferir a própria carne, como agora, é nova, surpreendente e inqualificável.
Lembro de ver, na imprensa, muitos elogios ao ascendente maestro Roberto Minczuk e seu "dinamismo", seu "empenho" e sua "capacidade" para virar a mesa da OSB, logo que assumiu sua direção. Saiu à luta, convocou patrocinadores, buscou um modelo de operação inspirado em outras orquestras do mundo e venceu a parada, colhendo os vivas e aplausos com aparente humildade. Talentoso, sim, não resta dúvida; comunicativo, ganhou a simpatia de muitas plateias diferentes, sempre falando em Deus e evocando sua origem evangélica assumida.
Neste momento absurdo que a OSB e seus músicos vivem, diante dos estarrecidos olhos do mundo artístico, a gente vê, com tristeza, que religião alguma é capaz de vencer as armadilhas da natureza humana. A fama do bem-sucedido e aparentemente sempre disposto maestro certamente subiu à cabeça. Apesar de todas as vozes que alertam, clamam e apelam ao seu bom-senso, o diretor não ouve ninguém e, com absoluta truculência, submete os músicos que o apoiaram na reconstrução da entidade a humilhações inimagináveis, que culminaram com a recente e arbitrária demissão de 40 deles, por não terem comparecido a uma absurda "prova de qualificação profissional" que ele inventou.
Acho que o maestro devia estar ouvindo rádio no dia em que o Sr. Sérgio Besserman Vianna declarou, no programa de Lucia Hipólito, que "o Rio não precisava de três orquestras", e sim de "uma única e grande orquestra". Talvez inspirado nessa assertiva, resolveu criar à sua volta, de modo absolutamente autoritário e sem qualquer embasamento real, um "estado da arte" delirante. Agora, 40 dos músicos que dedicaram sua arte, talento e esforço pessoal para colocar a OSB no patamar de excelência que vinha consolidando, terão de recorrer à Justiça para - se tiverem a sorte de encontrar um juiz sensível, profissional e com senso de realidadea - tentar ser reintegrados à instituição. Enquanto isso Minczuk, contrário a todos cânones básicos de um bom cristão, que tanto alardeia, segue, implacável e como que intocável, sua trilha de destruição em nome da "arte".
Artistas sérios e conscientes como Cristina Ortiz e Roberto Tibiriçá, para quem a fama não se deu a qualquer preço e foi, sim, conquistada com muito trabalho, esforço e disciplina, cancelaram seus concertos com a OSB em solidariedade aos seus músicos. Atitude exemplar que deveria ser seguida por todos os artistas e pelo público também.
Para tentar neutralizar a péssima imagem ditatorial que vem granjeando com suas atitudes, o maestro rege no próximo domingo, no Municipal - na matinê ao preço simbólico de 1 real - um espetáculo chamado Tributo a Portinari. O estratagema é usar a OSB Jovem e bailarinos de destaque, como Ana Botafogo, para atrair a atenção do público e fingir que está tudo bem.
Penso que o corpo artístico do Theatro e a própria direção da casa deveriam, como diziam os antigos, "cortar suas asas" e não permitir a escalada de um processo que apresenta todos os sintomas de uma egotrip de quem se considera acima do bem e do mal, da ética e do respeito humano e artístico que deve à sua orquestra.
O público, por sua vez, precisa ser mais bem informado, com objetividade e presteza.
(Um panfletozinho bem resumido, distribuido na imensa fila que se forma em torno do Theatro, nas manhãs dominicais a 1 real, por exemplo, quem sabe?)
O que me causa espécie é que os patrocinadores da OSB, assim como a direção dos teatros onde a Orquestra tem agendados concertos, não se posicionem no sentido de exigir ou retratação de tais atitudes ou, se o maestro radicalizar, pelo menos uma decente renúncia ao cargo que, apesar de todo o seu talento, não está conseguindo exercer com bom-senso.
Vamos acordar! Num trecho da elegante e comovente correspondência que lhe dirigiu, divulgada na internet por grupos de apoio aos músicos da OSB, a sra. Francine Schutzman, Presidente do Conselho Executivo da Organização Canadense dos Músicos de Orquestras Sinfônicas - à qual Minczuk presta serviços naquele país - , declarou:
[...] Aqueles que trabalharam com o senhor nas orquestras canadenses atestarão que o senhor trouxe um compromisso forte com os mais altos níveis de desempenho de uma orquestra. Nós apoiamos e compartilhamos esse compromisso; no entanto, prcisamos e devemos salientar que altas ambições artísticas precisam ser unidas ao respeito e à compreensão. Como Alex Klein observou, a história das orquestras - e em particular das grandes orquestras - tem sido marcada pelo respeito aos músicos como artistas e pessoas. Estas condições não são somente necessárias para nós, que atuamos em uma profissão altamente exigente, mas são importantes para aqueles possuem ideais artísticos elevados. Chamar uma orquestra inteira para se preparar a defender os seus postos de trabalho em uma avaliação de desempenho, com um tempo de preparação limitado, durante um período programado como férias, só pode levar a uma atmosfera de desconfiança e hostilidade. Isso reflete negativamente em todos nós, e compromete o espírito de uma orquestra - que, afinal, depende, para o seu sucesso, da confiança e de um trabalho coletivo. O senhor pode não estar ciente disso, mas os olhos dos músicos e ativistas sindicais de todo o mundo estão sobre o senhor agora."
Se nem diante de argumentos como estes e do protesto veemente e qualificado de personalidades como Alex Klein e John Neschling, entre tantos outros, nada se faz para reverter esse quadro de desconfiança e hostilidade, como diz Schutzman, e de desrespeito, o que podem esperar do seu país os talentosos músicos que dedicam sua vida a nos proporcionar a rara felicidade de possuir e se orgulhar de uma orquestra como a OSB?
Será que não está passando da hora de agirmos todos - artistas, casas de espetáculo, patrocinadores e público - para frear essa ambição desmedida disfarçada de "profissionalismo"?