sexta-feira, maio 27, 2011

Mergulho sincero


Tatyana, de Deborah Colker

Foto: Leo Aversa - Divulgação

Tatyana, o espetáculo que a Cia. Deborah Colker acaba de estrear no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, é uma daquelas experiências na vida diante das quais, por um momento, a respiração da gente para e sobrevém a nítida certeza de que estamos próximos de uma espécie de epifania artística. E não revestida de qualquer clima apoteótico, muito pelo contrário, mas de silêncio e delicadeza, de beleza e síntese.
Não toquemos, por enquanto, na história singular da companhia, nem em suas alegrias e conquistas. Fiquemos com Tatyana e Púchkin, com Tchaikovsky e Cranko. E com a profundidade com que Deborah Colker penetrou nas águas de doze mares e cruzou um continente de cultura para chegar a esse nível de essência.
Tudo em Tatyana se comunica imediatamente. A construção coreográfica, cenográfica e estética é de refinada sensibilidade e, ao mesmo tempo, muito fácil de ser compreendida em todos os níveis. As sutis referências de movimentos, atmosferas, cores e drama que evocam o emblemático Onegin de John Cranko não passam despercebidas a quem está familiarizado com o ballet, mas reforçam o mérito da singularidade com que Colker desenvolve sua obra. Tempos de movimentos belos, cuidados, de intensa elegância - e plenitude no conhecimento que dá liberdade aos corpos para construir harmonia.
A ideia central de se aprofundar nos quatro personagens principais – Tatyana, Onegin, Olga e Lenski – e incluir Púchkin como um alter-ego muito participante (vivido pelo espetacular bailarino Dielson Pessoa e pela própria Deborah Colker, em momentos alternados) já tinha sido abordada pela coreógrafa em algumas entrevistas, mas nada se compara à propriedade com que isso se desenrola no palco. As emoções têm cores e formas diferenciadas na personalidade de cada um dos quatro bailarinos que interpretam um mesmo personagem. Dá a sensação de que as imagens e sentimentos se fundem, de alguma forma – e que, mesmo separados, os corpos são um só. Mais importante ainda, o público sente isso na hora e acompanha toda a narrativa como se recebesse um instantâneo dom, por obra e graça da beleza da dança - e de um roteiro musical apuradíssimo, construído no espírito de uma comunhão de 17 anos entre a coreógrafa e o compositor e diretor musical Berna Ceppas. O percurso da música, detalhado num comovente depoimento de Ceppas no super bem-cuidado programa do espetáculo, mostra, além de conhecimento, paixão; além de paixão, beleza; além de beleza, sensibilidade; além de sensibilidade, um profissionalismo a toda prova. Há que destacar o tremendo impacto do recurso de sobrepor as vozes femininas de Elena Konstantinovana Gassionok (em russo) e de Debora Colker (em português) à música de Henryk Górecki, no momento em que Tatyana escreve a Onegin. E aqui só posso me repetir: comunicação imediata, compreensão absoluta, a mais pura dimensão da arte causando o efeito que, em síntese, é sua razão de ser: transformar, salvar e contagiar o público.
Ao longo do espetáculo, a sincronia e o ritmo se completam de tal forma que não há o mais leve sinal de quebra ou fastio. No Ato 1, a movimentação dos bailarinos pelo cenário-árvore de Gringo Cardia é absolutamente suave; todos parecem deslizar o tempo inteiro. E volta a ideia de um refinamento, de uma humanização dos movimentos, talvez mesmo uma libertação inédita da ideia de sofrimento físico que, infelizmente, ainda persegue uma parcela considerável da dança contemporânea que se pratica hoje. E Deborah Colker parece ter ultrapassado essa marca com considerável maturidade, estabelecendo uma nova eloqüência corporal para o seu processo criativo. Não é à-toa que ela mesma diz estar se aproximando, cada vez mais, da condição humana. Sua recriação contemporânea de grandes conjuntos, em analogia estreita com a tradição clássica, em determinadas cenas do Ato II, cria momentos verdadeiramente sublimes, um alento que aponta na direção de uma autêntica revisão conceitual, que forçosamente só pode fazer bem à contemporaneidade.
Uma pulsação diferente marca o duelo entre Onegin e Lenski: a densa dramaticidade, bem marcada coreográfica e musicalmente, sofre, a meu ver, um pequeno abalo com a escolha das armas. Apesar de ficar claro que, ali, a opção foi fugir ao óbvio, as bengalas se saíram razoavelmente bem, mas os leques nem tanto - embora, no conjunto, a cena resulte estética.
Vale ressaltar ainda a propriedade das linhas de luz que se projetam, em teia, no início do Ato II, envolvendo e deslindando, ao mesmo tempo, as transformações dos protagonistas. Aliás, após a visão dessas formas concretizadas no palco, torna-se fácil compreender o depoimento de Deborah Colker ao Globo sobre o uso de um projetor especialíssimo: “Ainda que seja usado apenas em uns três ou quatro segundos, é fundamental.” O movimento e a marcação dessas linhas são, nesse ponto, indispensáveis à compreensão da história. Daí em diante, belezas e mais belezas se revelam continuamente, como as Tatyanas em luta interna no piso superior e as cenas praticamente cinematográficas do reencontro dos protagonistas, fotografadas com luz, num eficiente e contundente jogo de aparições e desaparições que intensifica o drama e, ao mesmo tempo, evoca uma suavidade de desenhos, um aspecto pictórico que cativa profundamente.
O solo de Deborah, marcado por belos efeitos curvilíneos de projeção, pode ser visto como uma celebração, não exatamente circunscrito à história, mas em harmonia com o conjunto. Fui atravessada por uma sensação semelhante à da última vez que Béjart esteve no Municipal com sua companhia - o palco inteiro às escuras e o coreógrafo, em toda sua majestade, emoldurado por um fio horizontal de luz, para receber a homenagem da plateia. As duas situações guardam uma semelhança simbólica: assim como Béjart naquele inesquecível momento, Deborah Colker tem todo o direito de comemorar no contexto dessa obra (provavelmente a sua mais completa e complexa criação até hoje), e bafejada pela alma de Puchkin, numa espécie de mútuo agradecimento pelo bem que o talento de um fez à criação do outro, e que ambos fazem à arte.
Confesso que teria preferido um final sem os efeitos de luz, sem aqueles possíveis flocos azuis de neve que aguaram, em mim, uma apoteose esperada. Coincidentemente, foi o único momento em que o público se confundiu – e hesitou por um instante em sua intenção de aplaudir. Mas este é apenas um detalhe diante da verdade e da força de Tatyana, um espetáculo que enche de orgulho o peito da gente, e que com absoluta certeza será celebrado mundo afora, adicionando novas aclamações à consolidada carreira internacional da Cia. Deborah Colker e de sua notável coreógrafa.

segunda-feira, maio 16, 2011

Da fragilidade, do corpo e da dança

Corpos frágeis, da Cia. Fragmento de Dança
Foto: Cris Lyra (Divulgação)


Pelo território retangular e fracamente iluminado do palco, distribuem-se impressões de movimento e sentimento: seis bailarinos-atores esquadrinham o espaço em desenhos lineares e, ao mesmo tempo, aleatórios, sob o opressivo tilintar de um fugidio tema musical.

Nove mulheres do nosso tempo, unidas por um traço comum – talento e força criadora encarcerados em corpos marcados pela fragilidade – inspiraram o espetáculo “Corpos frágeis”, da Cia. Fragmento de Dança, de São Paulo. Frida Kahlo na pintura, Virginia Woolf e Katherine Mansfield na literatura, Maria Callas no canto lírico, Marie Curie na ciência, Jacqueline du Pré na música erudita, Billie Holiday no jazz, Simone Weil na filosofia e Judy Garland no cinema e no show-business, foram decodificadas em movimentos muito livremente inspirados em suas vidas e obras. Para este trabalho, a companhia paulista, que se autodefine como dedicada à pesquisa e a criação em dança contemporânea, partiu do livro “Corpos frágeis, mulheres poderosas”, de Marta Martoccia e Javiera Gutièrrez, que evoca essas personalidades sob o prisma da relação entre dor e criação, entre fragilidade e força, que marcou todas elas.

Detalhes como a pequena exposição de fotos e textos, montada como um relicário de lembranças no hall de entrada do teatro, deixam entrever o nível de envolvimento de todos os criadores com o trabalho. Esse fervor, essa entrega, coisas próprias do transe artístico, emocionam ao nos fornecer uma pequena medida do esforço envolvido na concepção de uma obra, e valem muito para despertar o interesse.

No compasso do opressivo tilintar do primeiro e fugidio tema musical, espero por essas personagens, algumas quase íntimas, outras quase estranhas. E desde logo percebo que a economia é um forte aspecto da composição dos movimentos, que por vezes chegam a cortar a atmosfera sombria. As tonalidades escolhidas para figurino e [pouca] luz, que transitam por nuances do sépia ao marrom, formam um conjunto harmônico. A coreografia de Vanessa Macedo, que também assina a direção, revela-se crua e despojada, com tendência a “deixar” o palco, de certa forma. Sequências retilíneas, ausência de expressão nos rostos, movimentos que ficam a meio caminho, contribuem para ampliar a sensação de opressão.

Reconheço vestígios, talvez, de algumas das personas retratadas, mas eles desaparecem tão rapidamente em meio às tortuosas sequências que fico me perguntando se teriam sido fruto da minha imaginação. Rendas, babados, arcos de violoncelo, contorções, corpos apanhados horizontalmente e atirados ao chão de modo sincopado, pessoas arrancadas de cadeiras, agressores que se tornam agredidos e assim sucessivamente... Tudo marcado por uma trilha competentemente desenhada para perseguir, com variações, a atmosfera opressiva – o que resulta em alguma perda de dinâmica no processo.

Corpos frágeis tem muito de teatro e muito pouco de dança. Momentos de claridade, como o único pas-de-deux de verdade, que acontece já próximo do final, mostram que alguns dos bailarinos têm mais para oferecer do que o espetáculo permite. Fiquei com a sensação de que todo o investimento feito na pesquisa não se traduziu, efetivamente, em dança; e mais, a comunicação com o público também não aconteceu completamente. Tenho razões para acreditar que nem todo o simbolismo evocado foi compreendido, visto que os aplausos, na noite em que assisti, não foram além da educação. Apesar de sua delicadeza, as cenas finais envolvendo as pérolas ficaram soltas no espaço. Faltou arremate e, sobretudo, aquele “clic” essencial com a plateia.

Acho que a dança contemporânea, com tantos e inegáveis talentos – como os que vimos em Corpos frágeis, por exemplo – precisa se lembrar de algo básico: é válido se embrenhar em pesquisa, desde que ela resulte em movimento encadeado, cadenciado, contínuo e executado com beleza. Em outras palavras, desde que se transforme em dança.


terça-feira, maio 03, 2011