domingo, outubro 04, 2009

Drume, Negrita

O rosto da dor: fãs se despedem de Mercedes Sosa em Buenos Aires (foto Reuters)

No dia 29 de novembro de 2008, postei aqui minha alegria, o êxtase de estar em presença da voz, do amor e da força de Mercedes Sosa. Hoje, que a perdemos, um bumbo imaginário, irmão gêmeo daquele que ela carregava para nos exortar a fazer a nossa parte pela América Latina, ressoa num canto fúnebre, marcante e compassado como as pausas de uma procissão.
A Negra que tanto amamos deixou o corpo que há algum tempo lhe pesava e seguiu em frente com seu canto, o canto que ela transformou no nosso sangue, para além das cordilheiras. Para além de qualquer tempo, de qualquer limite, de qualquer fronteira. Com a mesma fé criança com que sempre amou o seu povo, todos os povos, todo aquele que, onde quer que fosse, estivesse privado da sua liberdade, da sua cultura e de seus direitos essenciais.
É esse o povo que mereceu seus melhores momentos, seus mais tonitruantes e libertários acordes. Mercedes pintada para a guerra, índia, mulher e espírito da vida, era o retrato da paz que todos almejávamos. Era o resistir em figura de gente. Mercedes resumia todas as alquimias, todos os ritos xamânicos, toda a nossa alma ancestral entranhada na terra. E o meu amor por ela não tinha limites; na sua voz cruzei o continente, atravessei todos os rios, vivi emocionada as misérias e beleza da nossa América Latina tão aviltada. Mercedes era a certeza de que podíamos ser como queríamos ser, todos latinos, todos hermanos, todos iguais.
Mercedes habita em mim muito além dos poucos momentos em que tive a sorte de vê-la cantar. Está nas veias e canta. Gracias a la vida, que me ha dado tanto. Y vas Alfonsina con su soledad... Lá está Mercedes com seu poncho listrado, os escorridos cabelos e aquele olhar de índio, que ao apertar ligeiramente os olhos parece já ter enxergado o universo inteiro. Aquela fortaleza diante de quem todos, sem exceção, se emocionavam. Lá está ela com seu bumbo, com sua revolta e alegria, com seu amor infinito, ecoando pela cordilheira, atravessando o nosso corpo para espalhar verdade e poesia. Para arrastar consigo milhares de adeptos de uma paz possível, de um amor que rejeita toda e qualquer xenofobia e nos reúne a todos numa raiz celebrada e verdadeira, em que cada ser diferente é respeitado e se torna um igual na voz do sangue latino.
Em novembro de 2008 eu estava exultante por tê-la visto, ainda que doente e inspirando cuidados. Hoje eu a revejo no filme dos últimos 30 e tantos anos, como um grande anjo revelador que guiou aspectos muito importantes da minha vida.
As cinzas dessa nobre mulher de largo abraço e infinita voz, que será cremada amanhã, vão ser repartidas entre a Chacarita onde nasceu, Mendoza e Buenos Aires. O seu canto, porém, tem o dom da ubiqüidade e se espalhará mais uma vez pelo mundo e nos dirá, mais uma vez, o quanto é importante fazer o caminho da paz, da fraternidade e da alegria de ter o próximo como irmão.
Drume, Negrita, no centro da paz que você plantou neste mundo.

domingo, agosto 23, 2009

À Motown, com carinho




Viver a década de 1970, com seu colorido e contradições, foi um privilégio para mim. Com meus 14, 15 anos, adorava usar sandálias trançadas na perna, os ousados verde-limão, rosa-choque e laranjão que coloriam as roupas, o psicodelismo em todas as imagens, caminhar contra o vento, sem lenço e sem documento. Se havia um lado triste - a repressão indiscriminada, o obscurantismo e seus efeitos desastrosos na educação do nosso povo, a perda de grandes talentos brasileiros nas mãos de um monstruoso aparelho repressivo -, havia um lado adolescente legítimo, que era vivido irremediavelmente. E isso incluía as "brincadeiras" (pequenos bailes que acabavam por volta da meia-noite) no Cana Esporte Clube, em minha Barra Mansa natal, os Festivais da Canção que revelaram tantos talentos preciosos... e os artistas da Motown.
Ainda tenho vários compactos simples e duplos da gravadora que revelou alguns dos maiores talentos negros da América: Diana Ross, Michael Jackson, Marvin Gaye... Por isso foi um prazer muito grande assistir ao espetáculo O som da Motown, idealizado por Renato Vieira e Cláudio Figueira.
A concepção é inusitada: cinco cantoras representam todos os artistas da Motown, revezando-se em figurinos e gêneros, numa sucessão bem organizada e profundamente representativa dos tempos de ouro da gravadora. E que cantoras! Mais que isso: que boas atrizes! Simone Centurione, Thalita Pertuzatti, Ellen Wilson, Alcione Marques e Débora Pinheiro dão um verdadeiro show de versatilidade.

Aliás, é bom que se faça um parêntese com relação à recente "era dos musicais" do teatro brasileiro, que nos tem oferecido safras e safras de cantores-atores-dançarinos muito dotados e poderosos! Tudo é questão de oportunidade: os americanos não nascem sabendo, mas aprendem tudo isso nas escolas e aperfeiçoam depois. Está provado, com os nossos musicais, que não somos nem melhores, nem piores: com oportunidades iguais, sem dúvida ganhamos pelo número, pelo colorido e pela diversidade cultural! O talento brasileiro tem um tempero que ó, só aqui mesmo.

Para situar a platéia, não faltou uma eficiente vídeo-reportagem retratando as contradições e alegrias de uma época de mudanças. Não faltou também a luz negra e o charme que embalou nossa juventude entre-mundos. Em cena, o poderoso time de meninas desfila os sucessos da Motown com classe, elegância e, antes de tudo, voz. Voz verdadeira, cheia e poderosa, sem artifícios, direta e profunda. Destaco o belo timbre de contralto de Alcione Marques, apesar de sua evidente dificuldade com a pronúncia das letras. Os figurinos são extremamente fiéis e de bom gosto, além do ajuste perfeito.

É claro que não há como falar em Motown sem falar 'dele', Michael Jackson. Nesse particular, cabe uma observação importante: O som da Motown estreou três semanas antes do ato final do ídolo. Não há, pois oportunismo algum na mais bela homenagem que poderia ter sido feita, em qualquer tempo, ao artista. A cena é de uma simplicidade tocante e, confesso, me fez chorar muito. Afianço que não fechei luto por Michael e o produto em que se transformou ao longo do tempo: lamentei, apenas. Mas ao ver o seu momento em O som da Motown, vivi um luto muito maior, diferente.

Em um cenário praticamente às escuras, havia apenas um rasgo de cortina aberta, como que a mostrar um segundo palco lá dentro. Em cena, apenas a cantora Simone Centurione, a única branca do time, em traje de época e peruca black-power, observa as imagens que se insinuam no rasgo da cortina: Michael Jackson garoto, com seu sorriso aberto e limpo, de terno amarelo-ocre. Simone começa a cantar Ben, a cappella. E é secundada por Michael. Segue-se um dueto sentido, brilhante, honesto. Impossível não se pensar na essência de Michael Jackson, apenas um menininho começando a vida, uma criança cheia de sonhos, alegre, verdadeira. As pessoas que só conseguem ver a criatura disforme em que o artista, por razões diversas - medo, dificuldades internas, o que fôr - acabou se transformando, decerto não se lembram, em momento algum, daquilo que ele era, da matéria pura de que era feito. Criança. Talentoso. Fértil. Aberto. Apenas alguém que era o que era.
Tocada pela singeleza, chorei por Michael, pela criança a quem não foi dado, verdadeiramente, o direito de existir. E tive saudades de Ben, a canção dedicada a um ratinho e tema de um sinistro filme que, de certa forma, prefigura o lado dark da futura vida do menino:

They don't see you as I do,
I wish they would try to,
I'm sure they'd think again
if they had a friend like Ben...

"Eles não o enxergam como eu; gostaria que ao menos tentassem, pois tenho certeza de que pensariam diferente se tivessem um amigo como Ben." É o que parece nos dizer Simone, porta-voz mais que habilitada da homenagem - um dos grandes momentos de um espetáculo que, sem pretensões e com rara competência, é um dos melhores musicais da temporada, sem dúvida alguma.

sábado, julho 18, 2009

Ricardo

Ricardo, década de 70 - Arquivo pessoal de R.


Não estou aqui para contar de novo a bela história real que tenho contado - e vivido - tantas vezes. Estou aqui para comemorar a presença de Ricardo, essa pessoa que entrou na minha vida justamente por aqui - e pela canção
Viagem, de Taiguara, um grande artista brasileiro muitas vezes esquecido.

Ricardo, alma bailarina, espírito a 24 quadros por segundo, coração de musical, sonhos com jeito de Fox, Paramount, MGM, é alguém que me despertou de novo o prazer de contar histórias, de voltar no tempo sem estar fora do meu tempo, que me devolveu várias vidas que andavam envolvidas em papel de seda no fundo da memória, mas me vieram renovadas, imensas, atuais e prontas para serem recomeçadas dentro de novas estéticas da alma, do corpo, do tempo-hoje.

Ricardo, um baú de riquezas com perfume das primaveras austríacas. Na verdade, a cada vez que me chega um email prenunciando as alegrias frequentes que tenho ao ler o Tertúlias, comemoro Ricardo e sua inquietude tão viva, sua criatividade, entusiasmo, paciência de descobridor. Sempre que podemos, curtimos um delicioso bate-volta nos comentários do seu blog, hoje seguido por mais de 60 habitués, como ele chama os seus seletos convidados.

Alguns deles - sempre por obra e graça de Ricardo - têm aportado por aqui, o que me leva hoje a sacudir recentes impotências e animar-me, de novo, às palavras. Mais uma vez, Ricardo me desperta dos torpores e me convida à vida, a um Peach Melba imaginário em uma talvez magnífica varanda de algum hotel art-déco em Viena, em honra de Nellie Melba, a inspiradora da iguaria.

Ricardo, neste sábado cheio de vontade de viver de novo, um beijo enorme para você!