domingo, julho 24, 2005

Todas as guerras nos afetam

Talvez por um mecanismo psicológico de defesa, temos uma certa tendência a cristalizar nossos sentimentos mais profundos diante de situações de perigo, conflito, guerra. Vivemos em torno dessas situações, sejam elas próximas ou aparentemente distantes, como se elas não nos afetassem, como se tudo acontecesse somente com os outros.

Até presenciar um ato violento, como protagonista ou não. Ver aquela dor passar por dentro do corpo, guardar-se em imagens na memória, um filme que insiste em se reproduzir na tela da consciência.

Ou até ser atropelado e tocado pelo relato de alguém que viveu, ou vive, uma guerra. Nesses momentos, dá-se a ponte entre a humanidade que mora em nós e as situações que ameaçam essa humanidade.

A Flip 2005 provocou em mim umas tantas alterações nesse sentido. O ambiente esteve todo o tempo aberto à exposição de relatos de experiências fortes, não para que fossem vistas como curiosidades, como forma de ampliar nossos insights, mas justamente para nos confrontar com duras realidades que mudam o mundo a cada segundo e sacodem, violentamente, o quintal da nossa alma.

Me lembro de uma cena exibida em todos os telejornais há um tempo atrás, que me marcou profundamente: um palestino e seu filho de uns 10, 11 anos, tentavam passar por uma calçada onde só havia um muro, nenhum lugar para se proteger, com o exército atirando bem à frente. O pobre homem, desesperado, fazia sinais, pedia passagem, tentava dizer "Por favor, deixa a gente passar!" a metralhadoras insensíveis produzindo balas a todo vapor, ao mesmo tempo em que tentava inutilmente proteger, com o próprio corpo, o corpo do filho. E tudo documentado por uma câmera de frente para o crime. As balas não cessam, apesar dos apelos, a criança é brutalmente assassinada e o pai fica muito ferido. O desespero daquela cena jamais saiu da minha memória. No dia seguite, soube pelos jornais que o homem sobrevivera, e me lembro de ter sentido uma enorme dor. Pensei: talvez fosse melhor morrer, numa situação dessas. Uma pessoa comum, pacífica, que só deseja, e não consegue, fazer o que todo pai desejaria num momento daqueles: proteger seu filho de todo mal. E fica apenas com a morte nas mãos.

Anos mais tarde, numa tarde de domingo que se anunciava aprazível no Rio de Janeiro, chego de carro ao Centro Cultural Banco do Brasil, com duas amigas. Ia ver uma exposição de desenhos de Rembrandt. Logo ao saltar, alguém na porta do Centro Cultural diz: "Olha!" Olhei e, a poucos passos de nós, no meio da rua, um homem com uma bala na testa era imobilizado por um policial à paisana que brandia em todas as direções uma pistola a meu ver gigantesca. Apavoradas, retornamos ao carro e nos abaixamos, sem saber o que poderia acontecer. O homem, possivelmente um assaltante (jamais saberemos), morreu na calçada. E o domingo inacabado se esvaiu em tristeza.,

Na Flip, vários depoimentos vieram mexer nessas feridas aparentemente pequenas. E tiveram o efeito de um estranho mas necessário despertar. No Rio de Janeiro, em Jerusalém, em Bagdá, na faixa de Gaza, em Angola, nas muitas favelas brasileiras dominadas pelo tráfico, em Madri e Londres, no Egito e em muitos lugares que não figuram nos jornais, a insanidade destrói vidas o tempo inteiro, por milhões de motivos e nenhuma razão.

MVBill é um rapaz admirável, que se diz salvo pelo hip hop e pelos livros, que descobriu trabalhando numa banca de jornal. O hip hop foi a ponte para vencer a invisibilidade de quem é "preto, pobre, mora em favela e teve uma infância padronizada, com muito trabalho e pouco estudo", segundo suas próprias palavras.
Hoje luta para diminuir o genocídio de jovens pretos e mestiços das favelas por conta do tráfico, mais de armas do que de drogas, segundo suas pesquisas, relatadas no livro "Cabeça de Porco", escrito em parceria com seu empresário Celso Athayde e o sociólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário de Segurança do Rio de Janeiro e alvo de perseguições políticas que o obrigaram, inclusive, a se auto-exilar no exterior.

Com o clip "Soldado do morro", que retratava jovens do próprio tráfico, Bill quis documentar a dimensão da tragédia que condena à morte 100 em cada cem mil adolescentes brasileiros pretos e pobres, estatística pior do que a de conflitos como o do Oriente Médio, por exemplo. Em vez disso, foi acusado de fazer a apologia do tráfico e responde processo até hoje. Vozes em sua defesa? Nenhuma, a não ser a de Luiz Eduardo Soares, que nem sequer o conhecia, mas sabia tudo das artes e manhas entre o aparelho policial e o tráfico. "Quando li sua entrevista na revista Caros Amigos, vi que ele só fez isso pela verdade", emociona-se Bill.

Dos 16 jovens que aparecem no clip "Soldado do Morro", quinze já estão mortos. Rodando o Brasil inteiro para documentar a situação dos jovens reféns do tráfico, MV Bill e Celso Athayde perceberam que a dimensão do problema era muito maior do que pensavam; as mortes continuam, do Oiapoque ao Chuí, e muitas não são noticiadas. Com quase 180 horas de material filmado, Bill admite que o problema está longe de uma solução. No noticiário, ganham espaço as mortes mais "próximas" das metrópoles, mas ninguém fala do problema em termos nacionais. Os jovens filmados falam de sua esperança de mudar, de seus sonhos e dores. Um dos retratados no clip, também assassinado, tinha uma enorme revolta porque a mãe "morreu antes de me levar no Beto Carrero". Seu maior desejo era ser palhaço.

Saída não tem, mas, segundo Bill, "a humildade é o nosso método científico." Dentro de um quadro que parece insolúvel, e a partir do tamanho do abismo, sem arrogância, "talvez a gente consiga inventar um jeito de sair. Porque tem que haver um jeito".

Pedro Rosa Mendes, jornalista português, percorreu durante quatro meses áreas imensas de Angola que não eram visitadas por ninguém e representavam "uma cápsula gigantesca de invisibilidade e silêncio". A missão, realizada por sua conta e risco, era entender o conflito.

Já nos preparativos do que chama de sua "viagem através do vazio literal", Pedro descobriu que ninguém sabia nada do que se passava no país. Munido apenas de sua curiosidade jornalística, Pedro percorreu o território da guerra, que não existe para a economia e nem para o turismo: um arquipélago de vazio onde milhões de indivíduos reproduzem a solidão, isolados de ingredientes básicos da condição humana, como a memória de uma língua, da família etc. Em quatro décadas de conflito, 75% da população angolana tem hoje menos de 25 anos; desses, a grande maioria tem no máximo 15 anos. A guerra primitiva, porém servida pelos mais modernos instrumentos de morte criados pelo homem, deixa atrás de si um imenso rastro de destruição, onde todas as as referências foram cortadas, além de uma vasta legião de mutilados pelas minas terrestres.

Pedro Rosa Mendes fez questão de registrar sua viagem no livro "Baía dos Tigres", para que não seja possível dizer que essas coisas não aocnteceram. E se emociona com a generosidade dos sobreviventes, que reinventam a vida todos os dias. "Numa guerra assim morremos coletivamente, mas quando se chega a inventar a vida nessas condições, já não é uma sobrevida, mas uma vida muito além da morte".

Mas Pedro não se exime da responsabilidade. "Esse esterco humano, gente pilhada de toda normalidade a um nível dantesco, foi produzido por nós." E denuncia o papel financiador das empresas multinacionais que alimentam o conflito para servir a seus interesses.

John Lee Anderson, que conhece bem Angola, concorda que é um dos lugares mais esquecidos da terra. "Saí dali profundamente entristecido e com uma raiva que não sentia há tempos." O jornalista americano faz coro às denûncias de Pedro: "Há pessoas amputadas por todos os lados e sangue nas ruas. O país está destruído, mas o petróleo e os diamantes continuam a sair regularmente, sem qualquer problema." E a história é a mesma em Bagdá: "O maior exército do país é contratado pelas empresas petrolíferas, para proteger o oleoduto."

Nesse sentido, os dois concordam que a lógica de poder em Angola, no Iraque e em Serra Leoa é bem parecida. "Apenas por má fé conseguimos ignorar que as piores zonas de conflito são zonas de pilhagem", comenta Pedro. Angola garante 9% das necessidades energéticas dos Estados Unidos; nos momentos mais drámáticos, quando o conflito matava 1000 pessoas por dia, o comércio de diamantes financiava a Unita com 500 milhões de dólares.

Para ambos, esse tipo de círculo vicioso ocorre sempre que as zonas de conflito são mantidas numa membrana de invisibilidade. Por isso é tão importante escrever e mostrar, revelar todas as cores da tragédia.

Em Bagdá, os ataques a jornalistas se tornaram parte do conflito. E John Lee Anderson vê isso de forma preocupante, porque "a segurança é tão precária, qualquer controle é tão impossível que não se consegue chegar à cidade. Há carros-bomba suicidas e o exército não controla o trajeto entre o aeroporto e o centro de Bagdá. Muitos jornalistas vivem dentro da chamada "zona verde" e o único meio de cobrir é com imagens fornecidas por um dos lados do conflito. "Só se pode sair disfarçado ou à noite. É terrível, pois os jornalistas não são respeitados como apartidários".

John Lee Anderson alerta para o fato de que o Iraque não era campo de batalha do terrorismo, mas agora já é, numa guerra sem piedade. E os jornalistas são perdedores porque não conseguem mais informar: as opiniões são muito polarizadas. Mas mesmo assim, é importante que "não deixem que o conflito perca importância, porque Bagdá ainda é uma capital com 5 milhões de pessoas e teremos um monte de vítimas, diretas ou indiretas. E ser vítima não é uma condição nobre, nem torna alguém uma boa pessoa."

Pedro Rosa Mendes considera que a maior tragédia de lugares como Angola, Colômbia e Afeganistão é que "o conflito torna-se autônomo, despido de toda razão ou ideologia, e essa autonomia é viabilizada pela máquina da guerra, fruto dos interesses econômicos."

Como viver tudo isso, escrever e sobreviver? John Lee Anderson precisa de um período de "descompressão", ao sair de uma zona de conflito. "Eu sentia muita raiva, não podia ir de uma situação a outra assim impunemente. Então, quando saí do Iraque, fiquei uns quatro dias em outro lugar, para me compensar." Apesar das dores, o jornalista acha melhor ter suas feridas "abertas" do que cicatrizadas. "Prefiro ter todas as memórias comigo, para saber onde caminho e onde cai minha sombra."

Para Pedro, é preciso desenhar uma espécie de "fronteira cartográfica" entre aquilo que se vê e o que ocorre em si, para que seja possível refletir sobre a violência e dar-lhe uma linguagem que seja inteligível para quem não viveu a situação. "É preciso colher os espinhos no fim do dia".

Ao longo de sua viagem de quatro meses, que coincidiu com os quatro meses finais da primeira gravidez de sua mulher, Pedro Rosa Mendes carregou consigo a primeira ecografia de sua filha Inês. "Naquele papel tinha mais ou menos a linha do rosto dela no dia da minha partida. Não gosto de andar com retratos dos que me são caros, mas levei a ecografia. A tinta desse tipo de impressão sai com facilidade, e ao longo do tempo parece que se desvanecia, mas ao mesmo tempo continuava lá. E eu tinha que voltar antes que o rosto dela sumisse de vez. Aquela ecografia foi o meu elo com a realidade para a qual eu sabia que retornaria."

David Grossman falou no primeiro dia da Flip, e de certa forma foi ele quem abriu minha "ferida pessoal" sobre conflitos e responsabilidades, com uma constatação totalmente inesperada: "Nós, o povo judeu, temos um passado e tradições, mas não temos futuro. Viver em Jerusalém é como viver numa casa com paredes móveis; você não sabe direito onde está, onde vai, como fazer qualquer planejamento." A sinceridade de seu testemunho me emocionou e chocou, fez pensar e melhorou minha capacidade de ouvir naquele exato instante. Indo além, David insistiu na necessidade de nos colocarmos no lugar do outro, num conflito, mesmo que esse outro seja o "inimigo". Todos têm razões e nenhum tem razão, por isso é preciso combater o radicalismo, a arbitrariedade, a insanidade de parte a parte. É esse o compromisso que ele sempre teve em anos de jornalismo, em suas inúmeras crônicas, ensaios, palestras e em seu trabalho como escritor.

Estamos aí, todos, diante dessa insanidade - tragicamente exemplificada pelo brutal assassinato de um jovem brasileiro, eletricista mineiro de 27 anos e há quase três em Londres, por uma Scotland Yard que, cega pelo medo e pela impotência, o confundiu com um terrorista. Qual é a guerra que não nos afeta? Somos todos responsáveis e temos, como diz MVBill, de 'inventar uma saída', um jeito de nos comprometer, ainda que isso se restrinja a umas poucas linhas num blog, uma crônica de jornal, um livro-reportagem, um lívro-denúncia.

Se temos direito à condição humana, temos de atravessar as barreiras dessa dor e construir alguma coisa, cada qual com sua enxada e pá, mesmo que, em vez de metal, ela seja feita de palavras.

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