sábado, julho 16, 2005

Concordo em prosa e verso...

(da série "Tratado das Letras de Parati")

... com a jornalista Mànya Millen, em seu artigo "Palavras necessárias", do Globo de hoje: o que ficou da Flip 2005 foram as idéias - apaixonadas, vibrantes, inusitadas, poderosas - que tornam a literatura tão necessária para se viver nesse tempo de contradições.

Longe das críticas e além das pequenezas, o que veio à superfície foi tão importante, atual e imediato que desafia qualquer discussão bolorenta e recheada de definições. O que a literatura fez, durante toda a Flip 2005, foi provocar a consciência individual de um jeito bem coletivo. Houve, por assim dizer, uma "espalhação" democrática do pensamento humanista dessa virada de século. As pessoas tinham muito a dizer, mas nem tanto sobre si mesmas, seu estilo ou o ofício de escrever. O que conta de fato é o seu papel no mundo. E assim foi-se formando uma massa de enorme consistência, alimentada pelo pacifismo forte e sincero de David Grossman, um olhar totalmente novo e verdadeiramente humanista sobre o conflito entre israelenses e palestinos; pela releitura de Michael Ontadjee das suas raízes e das profundas feridas do seu povo; pelo agudo realismo documentado por MVBill, na busca de uma forma de frear o genocídio de adolescentes pretos, pobres e marcados pelas leis do crime organizado no Brasil; pelo jornalismo apaixonado de John Lee Anderson e Pedro Rosa Mendes, testemunhas da alma destroçada de Bagdá e de Angola; e pela fiel reprodução que Salman Rushdie fez do que havia de belo e amoroso num mundo hoje extinto, a Caxemira de sua infância.

Lado a lado com a criação literária e intimamente imbricado nela está o ato de viver, viver no mundo. E uma coisa alimenta a outra. Se Clarice Lispector não cabia no mundo dentro de si, se Machado de Assis explicava o mundo na voz seus personagens, e se a literatura também pode falar de algo externo à vivência pessoal, mas dá voz a um registro da condição humana (ou desumana), ela vive na eterna busca por traduzir, transformar e tentar solucionar o mundo. E tudo acaba - ou começa - na mesma reflexão: o que eu posso ajudar a mudar, enquanto produtor ou consumidor de literatura?

O tempo todo, em Parati - enquanto assistia às mesas e recebia essas informações, entre surpresa, emocionada e muitas vezes indignada, ou enquanto caminhava entre as ruelas seculares tentando capturar frestas de passado - essas questões me assaltavam. Reorganizava-me por dentro a partir de todas as novas referências, olhares e leituras da dor do instante presente em toda parte, que funde numa mesma panela os garotos das favelas brasileiras, soldados e crianças na faixa de Gaza, idosos e mulheres nas ruas de Bagdá, mutilados e sobreviventes em Angola.

Mànya Millen tem muita razão e muita clareza. A mescla entre vida literária e vida real, na Flip, foi a grande "produção" do encontro. Produção de consciência e de movimentos que, embora aparentemente pequenos, são definitivos na nossa construção diária do mundo. Sinto-me como que acordando, entre os pequenos e sublimes prazeres de um bom texto e o gravíssimo e convulso acontecer da vida que nos demanda, cada vez mais, ações concretas para operar, ainda que em ínfima escala, as transformações que são, assim como as palavras, muito necessárias para o hoje e o amanhã.

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