quinta-feira, julho 14, 2005

Dois homens turcos em um

(da série "Tratado das Letras de Parati")

Olho para ele e me lembro dos altivos beduínos do deserto, com os quais um preciso Malba Tahan povoou a minha infância. Ao lado de Monteiro Lobato, o grande professor Mello & Sousa, disfarçado de árabe, foi um dos autores que mais sedução e magia trouxeram à minha vida de criança sempre mais contemplativa do que afeta ao ar livre.

De fato, Orham Pamuk encarna muito bem o beduíno da minha imaginação; alto e esguio, moreno, olhos verdes, expressão distante e concentrada. E que nos dois encontros com o público transfigurou-se em dois personagens quase completamente distintos um do outro.

O primeiro deles estava tenso diante das "1001 Noites" e falou de sua relação atormentada com essa obra que exerce intenso e igual fascínio sobre orientais e ocidentais. Na primeira leitura, aos sete anos, teve medo; na segunda, aos vinte e poucos, ficou incomodadíssimo com o caráter duvidoso das mulheres das histórias e, embora tenha gostado do livro, não aceitou esse fato e ficou ressentido consigo mesmo! Na terceira, finalmente, sentiu-se influenciado pela magia das tramas e pela qualidade do texto, que virou uma contínua fonte de prazer e inspiração. À medida que falava do caldo de culturas que formou a obra, das várias versões nascidas na oralidade e da multiplicidade de autores, desvendava a história da história: não se sabe até que ponto as "1001 Noites" seria uma obra totalmente oriental. Publicado pela primeira vez numa compilação organizada por um autor francês, o livro dito "original" só mais tarde viria a incorporar contos como "Ali Babá" e "Aladin". E a estética se transformaria, também, nas sucessivas edições.

No segundo encontro surge um Pamuk espirituoso, engraçado e falante. É talvez o único autor que se sente influenciado pelas capas de livros que não leu, e mesmo não os tendo lido tem ciúme de seu conteúdo, "porque devem ter sido escritos por alguém com uma vida bem melhor que a minha".

- Quando não consigo escrever vou para uma livraria e fico por lá, procurando alguma coisa que nem eu mesmo sei o que é. De repente pego um livro, olho para a capa dele e isso me influencia! É verdade! E que inveja sinto de quem o escreveu! Depois vou para casa, escrevo, escrevo, escrevo... e volto para comprar justamente aquele livro, porque acredito que o autor deve ter dito alguma coisa importante. Aí leio e o conteúdo também me influencia!

Seu romance "Meu nome é vermelho" é uma história de mistério que versa sobre um pintor que cria iluminuras perfeitas. Pamuk, na verdade, chegou a se iniciar nos pincéis e tintas. - Não sei por que parei de pintar. Escrevi um livro inteiro (o autobiográfico "Istambul") só para explicar isso para mim mesmo.

Escrever, para um alegre e já totalmente descontraído Pamuk, tem a ver com lembrar e continuar a lembrar. E acrescentar cada vez mais, sempre e abundantemente, até que chega o dia de fazer o caminho de volta e cortar passagens.

Entre sorrisos largos e uma ou outra pitada do humor mais fino, Pamuk já domina a paisagem feito um tuaregue ondulando ao vento. Como Faulkner, sua maior referência, dá voz a objetos e deixa o romance se auto-inventar, em suas próprias palavras.

Os dois Pamuk, afinal, se combinam na melhor tradição árabe: magia e fé, sonhos que brotam como miragens do mais vasto deserto da alma e se transformam em palavras que contam histórias sem fim.

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