terça-feira, julho 12, 2005

Tratado das Letras de Parati

Primeira providência na friusca manhã de quinta-feira, 7 de julho; comprar um guarda-chuva - o maior possível, pois o tempo trai - e um caderno onde guardar a memória.
Ainda não sei bem que tipo de caderno vou querer, mas precisa ter capa dura e caber na bolsa. Enfim, algo prático e até meio de época, nesse tempo de palmtops e laptops.
A vendedora me indica uma ala no fundo da loja. Percorro as prateleiras e dedico toda minha atenção à escolha do exemplar perfeito. Toda a vida preferi aqueles de lombada, elegantes, sóbrios, mas ultimamente ando com o pé atrás; meu fiel "amarelinho", companheiro de tantas intimidades, foi desmontado por uma sobrinha, na tentativa de arrancar-lhe folhas! Então volto-me para os espirais e, após alguma deliberação, decido-me por um que atende pelo sugestivo nome de Happy Sports, com fotos de esportes radicais na capa consistente e uma espiral azul que confiei não fosse se soltar ou machucar meus dedos.
Depois, e só depois de o caderno bem guardado na bolsa, é que me deparo com os guarda-chuvas e escolho um enorme, axadrezado em estilo inglês, que decerto me defenderá das agruras do tempo. Na véspera, uma chuva implicante após o show de Paulinho da Viola me obrigara a cruzar na intempérie os poucos metros que me separam da pousada. Poucos, sem dúvida, em tempo firme; mas com chuva...
Sigo solene para minha primeira mesa, ou palestra, ou sessão, ou conferência. E a ansiedade por esse encontro com o novo, no espaço familiar da Tenda dos Autores, é bem parecida com a que me acometeu no ano anterior.
Após a mesma fila, encontro um ótimo lugar bem em frente ao palco que se chama mesa, emoldurado por uma Parati naif pintada ao fundo. Enquanto espero ao som de bossa-nova e às vezes Burt Bacharach, abro o caderno, busco a caneta, ligo os sentidos e a aventura começa, preenchendo minha cabeça e as páginas do caderno quase na mesma velocidade. Não que eu tenha sido, ao longo da vida, uma anotadora compulsiva; ao contrário, confesso que até desprezava um pouco essa prática. Mas como saber a festa pedra por pedra, para retratá-la aqui no blog? Rendo-me, e acabo tornando esse caderno quase uma parte de mim.
Com um fervor que eu própria desconhecia, passo a abrir o ilustre confidente e nele registrar velozmente as mais belas, as mais íntimas e até as mais duvidosas declarações, fragmentos de memória, excentricidades, trejeitos transformados em palavras. Interesso-me por todos os autores indiscriminadamente, os mais brilhantes e os acuados, os falantes e os tímidos, os envolventes, fascinantes, distantes, belos ou menos belos. E o caderno recebe tudo quanto é idéia, verdades ou não em ampla dose, diletantismos, aforismos, figuras de linguagem. É aberto cinco vezes sem falta a cada dia e fechado, para dormir, na hora do aplauso final. Mas fica comigo, ao lado do corpo, na pele da bolsa, e me faz rir pensando-o igual ao "caderninho" que Erasmo Carlos escreveu e Ronnie Von imortalizou: "eu queria ser o seu caderninho, pra poder ficar juntinho de você..." Não sei se ele, o caderno, concordaria, mas para mim é meio igual. Um caderno, um cofre-forte com as preciosidades que vou recolhendo bem preservadinhas, na minha escrita o menos taquigráfica possível, pois gosto mesmo é de ver as frases inteiras e ainda por cima não sou taquígrafa. O grande bem que guardo da pré-história administrativa é, sem dúvida, a capacidade de datilografar com os dez dedos e muito agilmente, mesmo tendo sido reprovada no curso do SENAC, há mais ou menos meio milênio atrás.
Houve momentos em que temi pelo fim do caderno antes do fim das sessões (como faria com dois cadernos?), mas com o evento para mais da metade convenço-me de que vai dar, e então terei tudo num só lugar.
De fato, é o que acontece. Das 96 folhas originais sobraram 16, o que significa que tenho nas mãos uma verdadeira volta à FLIP em 80 folhas, 160 páginas, mais de uma caneta de tinta e mais que o mundo de vastas intensidades.
São estas intensidades que derramarei a cada dia sobre este blog, para livrar minha alma da força das águas que a engolfam presentemente, e para trazer a todos os que me lêem um pouco do muito que senti, nesses parcos e loucos cinco dias literários.

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