quarta-feira, julho 13, 2005

Rimas de ordem

(da série "Tratado das Letras de Parati")

Confesso que conheço pouco da estética hip hop, ainda que tenha em casa uma filha e uma sobrinha adolescentes e tenha encontrado, em muitos dos festivais de dança que participo, trabalhos interessantes ao som desse ritmo vibrante e identificado com movimentos voltados para a inclusão.
Mas desde Parati uma história de hip hop tem estado dentro de mim, insistente.
Imagine milhares de adesivos para carro, todos absolutamente políticos e infinitamente diversos em intenção e gesto; falam de paz, violência, racismo, homofobia, revolta, felicidade, amizade, arbitrariedade, segregação e tudo o mais que você pensar. Agora pense numa letra de hip hop que junte tudo isso com algum sentido e, ainda por cima, com rimas - tudo para formar o retrato de um tempo agressivo e triste na história de um país.
Pois foi isso, justamente, o que fez o escritor israelense David Grossman, em colaboração com um dos mais importantes grupos de hip hop de sua terra.
Quanto mais de maldade você consegue engolir?, diz o refrão da Canção do Adesivo, como é mais conhecida. A pergunta cabe. É crucial e tristemente atual, tanto em Jerusalém como aqui. A bela embalagem musical, releitura atualizada dos ritmos tradicionais, não esconde o tom rasgado do texto, as palavras de ordem, as causas desencontradas.
Logo após o assassinato de Itzhak Rabin, David Grossman viu um homem tentando arrancar, com uma furadeira, um adesivo pregado num carro, que dizia: "Rabin é assassino". Foi aí que "bateu" a idéia de juntar todo aquele quebra-cabeça.
Com uma clareza e coração aberto impressionantes, Grossman cumpre o firme propósito de se tornar uma voz no encalço da arbitrariedade e na direção de um diálogo ampliado, um diagnóstico mais fundo do ambiente de conflito em que vive. E o hip hop é parte disso. Tanto que foi escolhido pela organização da Flip como a trilha sonora final da festa, após a última sessão, no domingo. Um recado para quem se confrontou, durante cinco dias, com o bom, o belo e o trágico nas diferenças além dos livros, que massacram grande parte do mundo. Um dos temas dominantes, aliás, do encontro - esmiuçado, além de David, como jornalista que vive em Jerusalém o cotidiano do conflito entre árabes e israelenses, por MVBill e Luiz Eduardo Soares, em cima do trabalho com os jovens das favelas dominadas pelo tráfico, e por John Lee Anderson e Pedro Rosa Mendes, jornalistas que cobriram Bagdá e a guerra de Angola, respectivamente.
Acabo cruzando mais uma vez com David Grossman na pontezinha que separa a Flip do centro histórico de Parati, e pergunto como se pode conseguir o CD. "Pela Internet", diz, no meio do aperto de mão. "Mas o que se deve procurar?", auxilia um jornalista que o acompanha. "O nome é 'Hadag Nahash", diz David. (Repito algumas vezes em voz alta). "Se você conseguir se lembrar disso, vai encontrar."
Repito foneticamente as palavras por todo o caminho até a pousada, onde breve pegarei minha bagagem para retornar ao Rio. Ao chegar, grafo-as no meu indefectível caderno de notas, para não esquecer. E debato-me durante parte da segunda-feira por não saber seu significado, até que o milagre da Internet desvenda tudo. E descubro que este é o nome da banda, e não da canção, como pensara. A música aparece cristalina num site do grupo, assim como uma tradução da letra e até o vídeo-clipe. Ah, e Hadag-Nahash, segundo a tradução do Google, significa "peixe-cobra", embora eu não saiba direito o que possa ser isso.
Ouvi-la tornou-se um ritual de lembrança, um reforço da marca de doçura e firmeza que envolve o olhar de David sobre a responsabilidade humana diante do conflito - o seu específico e o de cada um de nós. A responsabilidade absoluta, de cada um, de se colocar no lugar do outro, ainda que esse outro seja o seu inimigo. E combater o arbítrio dia após dia, com as armas da clareza e da humanidade.

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