domingo, julho 03, 2005

Muito depois da raiva, os assuntos estão de volta

... bem, a raiva passou, claro. Os assuntos, acumulados uns por sobre os outros, me repreendem e clamam por liberdade: querem o espaço que lhes é de direito no blogue nosso de cada dia. Concordo: afinal, seria impossível mantê-los quietos por mais tempo, no claustrofóbico cômodo a que foram involuntária e subitamente confinados.

Domingo, 26 de junho: muito trabalho numa nova tradução, desta vez um manual de ações de voluntariado. Traduzir é um grande prazer para mim - ser a única responsável por decifrar, para muita gente, os códigos mentais do autor, respeitando seu estilo num idioma que é pensado diferente do seu, antes mesmo de ser escrito. Adoro esse desafio, esse garimpo constante pelas palavras, expressões e formas que cumpram essa missão. Após dezenas de livros, partes de uma enciclopédia, artigos e contos, sinto-me cada vez mais à-vontade e feliz como tradutora. Depois de escrever, é o que mais gosto de fazer na vida!
Bem, nem só de trabalho, afinal, viveu o domingo: levei meu sobrinho André Luiz para ver "Madagascar", o tão esperado desenho da Pixar. Confesso que me diverti além da pipoca e do refrigerante; se Woody Allen tivesse feito um desenho, certamente seria este. E o leão Alex, personagem principal da história e rei do zoo de Nova York, seria o Woody Allen! Onde já se viu bichos de zoológico que odeiam selva, natureza, cadeia alimentar, essas coisas?
Bem, há muitas situações engraçadas, detalhes pitorescos e referências, toneladas delas. O que faz com que se divirtam mais aqueles que as conhecem. As crianças curtem, não ligam, mas nesse aspecto perdem. Na abertura quase psicanalítica (se é que a psicanálise explica algo sobre animais ditos irracionais), a zebra Marvin tem um sonho recorrente: está correndo por uma vasta campina com um lago e montanhas ao fundo. E é perseguida pelo leão Alex, seu melhor amigo! E ao som de... adivinha??? Nada menos do que a gravação original (com coro e tudo) de Born Free, tema do filme "A história de Elsa", clássico sobre uma leoazinha devolvida ao seu habitat. A garotada, é claro, dançou nessa.
De resto, a trama é engraçadinha, com as confusões que a bicharada arruma nos costados d'África, ao encontrar um bando de lêmures enlouquecidos. De todos os personagens, os mais interessantes são os pingüins fugitivos, que chegam a seqüestrar um navio. "Madagascar", longe de ser uma obra-prima, é divertido e prende a atenção. Pena que a tecnologia da animação por computador ainda pareça primária aos olhos de quem cresceu vendo os movimentos perfeitos criados manualmente por Walt Disney e sua equipe. Mesmo assim, vale a visita!

Segunda, 27 de junho: tinha uma reunião de trabalho com o grupo de cultura que estou ajudando a fundar, o ConceituArttis. Mas tomei bolo de quase todos. Um esqueceu, a outra estava atendendo um cliente, a terceira teve crise renal... o jeito foi cancelar e ir pra casa assistir C.S.I., a nova coqueluche lá em casa.
A série C.S.I. (sigla de Crime Scene Investigation) é positivamente um excelente produto. Em três versões (C.S.I., C.S.I. Miami e C.S.I. New York), trata sempre de um crime e da investigação que a equipe da Perícia faz a partir da cena do crime. Tem inteligência, lógica, tecnologia, efeitos, elencos pra lá de ótimos, tramas baseadas em casos reais e personagem que estão longe de ser perfeitos, mas que batalham até chegar a um resultado. Para ficar melhor ainda, às vezes não chegam. Não concluem, não conseguem prender um criminoso, erram como qualquer um. C.S.I. é tão interessante que Quentin Tarantino quis dirigir o capítulo final da série, que foi ao ar no último dia 29, com duas horas de duração. Não pude assistir, mas minha filha ficou ligadíssima e comentou: "Mãe, foi siniiiiistro!!!!"

Terça, 28 de junho: Dia de quase gritar de felicidade após assistir "Batman Begins". Trata-se de uma homenagem no mínimo comovente do diretor Christopher Nolan ao personagem original de quadrinhos concebidos para adultos, com tema adulto e reflexão madura. O Bruce Wayne de Batman Begins não tem nada das historinhas pasteurizadas que assitimos na infância, com seus BANG! POW! e CATCH! explodindo na tela. É retratado em toda sua dor, revolta e amargura. Sente-se culpado pela morte dos pais, assassinados na sua frente numa cidade violenta e destruída pela corrupção. A Gotham de Bruce Wayne poderia, sem medo de errar, ser comparada a qualquer grande cidade do mundo de hoje, imersa em problemas, refém da violenta e palco de uma impunidade quase generalizada.
Após passar quase uma vida treinando para se vingar, Bruce Wayne retorna à casa e se depara com uma Gotham ainda pior do que deixara. E resolve agir à sua maneira, já que não pode contar com o poder constituído. Para isso se transforma num Morcego, "porque me dá medo", revela.
Longe do estereótipo do justiceiro, o personagem que confunde e surpreende o crime organizado da cidade age alimentado pela raiva, mas não cegamente. Cumpre uma dolorosa lógica interna para defender Gotham e se livrar dos criminosos, com a ajuda de Alfred, o mordomo que o criou, de Lucius Fox, um adorável cientista meio louco que trabalha nas empresas de Bruce, responsável por todas as gadgets adotadas pelo Batman, e do quase sempre atordoado comissário Gordon, praticamente o único que não se deixou levar pela onda de corrupção.
A estética é perfeita: a tela grande se transforma no maior álbum de quadrinhos do mundo, que não cansamos de folhear. As imagens são fortes, belas, uma profusão de claro-escuros que reproduzem desenhos hiper-realistas. A luz é fantástica, a trilha sonora impecável, o ritmo intenso. Os atores, todo o grande time mobilizado para a luxuosa produção, não poderiam estar melhores. Christian Bale captou como ninguém a alma atormentada de Bruce Wayne. Michael Caine, sempre grandioso, não poderia estar melhor como o zelozo mordomo Alfred. E Morgan Freeman, e Gary Oldman, e Tom Wilkinson, e Rutger Hauer (belo como sempre), e Katie Holmes (revelada pelo ótimo seriado Dawson's Creek, também segura a onda e não faz feio de modo nenhum).
Batman Begins é um presente. E espero que, como o nome sugere, possa ser apenas o começo de uma série que nos devolva o personagem com suas cores verdadeiras, não só para nosso próprio deleite, mas também como uma reflexão que nos ajude a reconstruir de fato alguma coisa para as novas gerações. Sim, porque o Batman que nos chega agora não legitima as paranóias bushianas que trancafiam nossos sonhos; muitíssimo ao contrário, ele busca a cura para si mesmo e para os outros, admitindo a dor do mundo mas permitindo, cada vez mais, que a sanidade ocupe o lugar da devastação.

Quarta, 29 de junho: Fui ao Rio e fiz os exames para uma cirurgia de vista. Já decidi que vou tirar os óculos, e os prognósticos são os melhores. Creio que na próxima semana - quer dizer, pós-FLIP, onde estarei de 6 a 10 de julho - operarei a primeira vista (o intervalo entre as duas é de mais ou menos dez dias). Estou cheia de coragem e com vontade de poder fazer, de novo, um traço no olho sozinha, sem borrar!
À tarde assisti ao delicioso filme "Inconscientes", do diretor espanhol Joaquín Oristrell. A bem-humorada sátira da psicanálise tem uma trama extremamente criativa, além da beleza dos figurinos e da ambientação de época. Os atores são um capítulo à parte, que sem dúvida traduz a força de um cinema espanhol cada vez mais contemporâneo.
De noite, me esperava o Momix, num Theatro Municipal ultra-lotado. Da última fila do balcão simples, em que pese perder a visão da metade superior do palco, assisti ao belo "Lunar", mais uma demonstração de que o Momix sempre surpreende. Entramos literalmente no clima do espaço sideral, com seus sons e sensações, acentuados por eficientes projeções de formas, crateras, mares e desertos lunares. O uso da luz estroboscópica sobre roupas metade brancas, metade pretas, deu aos bailarinos oportunidade de criar mil movimentos, sempre em dupla mas como se fossem um. Ao contrário do que pensa um nobre amigo meu, que torce o nariz para o Momix porque "eles fazem tudo para esconder os bailarinos", em "Lunar" o jogo de esconde-esconde é, na verdade, muito revelador: os movimentos são tão perfeitos, suaves e bem desenhados que a gente reconhece, de pronto, a absoluta qualidade dois bailarinos.
E que bailarinos! Sucedem-se em outras situações, outros figurinos e propostas distintas - como as moças de maiôzinho verde-limão, que se movimentam sobre imensas bolas pretas e traçam no ar saltos e delicadezas quase intangíveis, ou os duos e trios "radiografados" por coloridas luzes iridescentes, que lhes conferem um aspecto semi-fantasmagórico, quase como "plasmas" no espaço.
As aranhas, porém, são talvez o momento mais fascinante. Nessa hora, concordo, nada se vê além dos tentáculos estilizados no palco, e o aspecto inexorável da sobrevivência na cadeia alimentar: o animal maior devora a sua presa diante de todos, mas em seguida se metamorfoseia numa imensa rosácea que se projeta e cresce no palco, pontilhando a bela trilha musical, e confere um certo êxtase ao final do espetáculo.
Final? Não sei, não. O agradecimento dos bailarinos, agora desnudados em suas formas trabalhadas e vestindo apenas exíguos trajes de banho, é um espetáculo à parte. Todos reproduzem seus melhores movimentos a olho nu diante da platéia e são acolhidos com o merecido e tradicional calor da nossa exigente platéia. O Momix é tão querido dos cariocas que já virou uma espécie de patrimônio! Um mar de aplausos, e não o mar da lua, envolveu os dez artistas num clima bem mais ameno que as temperaturas que enfrentaram, no solitário espaço, para produzir este fascinante espetáculo.

Quinta, 30 de junho: Dormi pouco, viajei de volta bem cedo de manhã, e o dia é cheio. Daqui a um mês darei por encerrada minha trajetória profissional na empresa em que trabalho, aposentada. E vou me dedicar, decididamente, à cultura. Nos planos estão um MBA em gestão cultural e um curso de empreendedorismo na PUC do Rio. Enquanto construo adequadamente essa passagem, envolvo-me de corpo e alma nos processos de comunicação que estou concluindo. E preparo-me para os altos e baixos que certamente enfrentarei, a despeito de minha escolha consciente. Vou para casa relativamente cedo e reencontro meus filmes e séries na tv a cabo, mas cochilar é inevitável.

Sexta, 1º de julho: Compro o último ingresso que me faltava para a FLIP 2005: o do show de abertura, com o amado Paulinho da Viola. Paulinho é para mim uma certeza, um prazenteiro conforto, o sorriso que é quase um abraço, símbolo do equilíbrio, da resistência da verdadeira cultura brasileira. Amo Paulinho com um coração quase tão azul como a Portela que passou em sua vida! Tenho por ele um respeito que beira a reverência. Aliás, assitir ao documentário "Meu tempo é agora", da Isabel Jaguaribe, com roteiro e entrevistas de Zuenir Ventura, só fez aumentar esse respeito e o orgulho de fazer parte deste "agora", de ter a chance de viver na mesma época que esse grande brasileiro.
Nesse mesmo dia, aporta no SESC de Barra Mansa, minha cidade, o show "40 anos de Jovem Guarda", com Wanderléa, Erasmo Carlos, os Golden Boys e os Fevers. O lado meu que curtia toda essa turma em 66, 67, não resistiu: lá fui eu em clima de "recordar é viver". E me deparei com um anfiteatro absolutamente lotado. Praticamente a minha geração inteira de conterrâneos, colegas de escola, amigos de domingueiras e "brincadeiras" (é como se chamavam os bailinhos da minha época), marcou presença.
O incrível é constatar que sabemos cantar praticamente todas as músicas que há anos não ouvimos. O computador mental do ser humano é tecnologia divina de altíssima qualidade; vai lá no fundo e busca as letras inteirinhas, que jorram automaticamente sem sequer a gente se dar conta!
O show começa com os Fevers, que depois continuam no palco acompanhando todo mundo; Golden Boys, Wanderléa (melhor e mais bonita do que nunca) e, por fim, o Tremendão Erasmo Carlos. Sua entrada, concebida para ser um delírio, é na verdade motivo de preocupação; passos incertos, rosto muito inchado e a pele de uma coloração pouco saudável, Erasmo inspira cuidados. Relembra seus grandes sucessos - "Gatinha manhosa", "Sentado à beira do caminho" e muitos outros - com a providencial ajuda dos Golden Boys e de Wanderléa (aliás, protagonista do momento mais emocionante da noite, ao ajoelhar-se na beira do palco para abraçar uma senhora idosa, enquanto uma platéia comovida entoava, muito afinada, a canção "Agora você vem dizendo adeus" que ficou inacabada, como que a consolá-la e embalá-la).
A grande beleza da noite ficou, na verdade, por conta da platéia. A disposição e o entusiasmo de comunicar-se com artistas queridos e ressuscitar uma alegria juvenil há muito guardada no peito foi um ato coletivo de coragem. Parece que a saudade de um tempo bom, a força de uma juventude duramente castigada pelos negros tempos de censura e repressão, a energia de quem sabe que pode mudar o mundo, tudo isso esteve por muito tempo sufocado nos corações de tantos homens e mulheres que construíram suas vidas, foram à luta, formaram família, criaram seus filhos. E que de repente, num ritual coletivo, encontraram nesse show o espaço para libertar todas as emoções de anos e anos, marcadas por músicas que os ajudaram a sobreviver durante uma das fases mais difíceis da nossa formação. A catarse coletiva traduzida com doçura surpreendeu e comoveu os próprios artistas, que a receberam como uma verdadeira carta de amor cantada em alto e bom som, o tempo inteiro, até o acorde final da guitarra do célebre e sempre talentoso Miguel Ângelo, dos Fevers.

Sábado, 2 de julho: o Ballet de Câmara, um dos amores da minha vida, ressuscita sempre. Estamos remontando o espetáculo "Quarteto", talvez a melhor síntese da trajetória desenhada pelo diretor artístico Antonio Bento para a companhia. Juntos há oito anos nessa empreitada, Antonio e eu já passamos por poucas e boas ao lado dos bailarinos: o grupo, que começou numa academia hoje extinta, não conta mais com uma sede para trabalhar. Por isso, passei o sábado correndo atrás de uma sala de ensaios, fundamental para seguirmos em frente. Ainda não consegui, mas na manhã de segunda prossigo em minha busca. No minuto final, sempre demos sorte; por que há de ser diferente agora? Respiro fundo, acalmo-me e aguardo até amanhã, confiando sempre na boa estrela da companhia.

Domingo, 3 de julho: Sinto-me estranhamente feliz após conseguir colocar este blogue em dia. Principalmente depois de ter assistido, de manhã, ao show dos 90 anos do palhaço Carequinha, uma das grandes alegrias da minha infância.
Carequinha era o rei da garotada na TV Tupi, quando eu era criança. Cresci assistindo aos seus programas. Além dele havia o Fred, hoje falecido, e o Meio-Quilo, um anão que engatinhava sentado por todo o palco (aliás, minha irmã do meio, Lenita, quando pequena, engatinhava igualzinho a ele). Carequinha faz parte de uma geração de belos e inocentes palhaços, que encarnavam uma alegria pura, poética, infantil mesmo. Ainda me lembro do Piolim, grande pioneiro, e do Arrelia, falecido recentemente, além de uma gama de outros, desconhecidos, personagens dos circos mambembes que circulavam pelo interior. A figura do palhaço tem seu quê de poesia e de tragédia, de emoção que se alterna com alegria. Mas Carequinha, o maior, o mais próximo, o mais querido, tem lugar cativo no meu coração. Então assumi a criança que mora em mim e sentei na platéia, ao lado de um sem-número de crianças, pais, mães e avós. Em casa, antes de sair, agüentei firme as gozações da família. E daí? De quem é o sonho?
Começa o espetáculo, com números de ventriloquismo, malabarismo, contorcionismo (sim, isso mesmo!) e boas palhaçadas. Eis que surge o Carequinha, com seu microfone, suas musiquinhas e a mesma voz de sempre, muito firme a despeito da idade. As lágrimas escorrem e vejo que, de menina, não mudei muito. Continuo a ter fé nas pessoas, a ver a honesta beleza de alguém que desperta e conquista o carinho de crianças de qualquer geração. Apesar dos desenhos japoneses, das Xuxas e Angélicas, lá estavam no SESC muitas crianças moderninhas, e no entanto absolutamente seduzidas pelo bom e velho Carequinha!
Penso no que há de belo e trágico na máscara do palhaço. No sorriso projetado e nos olhos que, mesmo anciãos, guardam o mesmo brilho, a mesma vontade, a mesma alma de artista. Penso no que há de grande em alguém como o Carequinha, que não desiste em seu traje de lamê colorido, na grande gola que ele mexe com os ombros, na bem-cuidada maquiagem, no chapéu e na expressão que tanta gente aprendeu a amar. E agradeço por estar ali, guardando seus 90 anos como um presente reservado a mim, unicamente a mim, há tantos anos, e só agora entregue.
Subimos no palco ao final, eu e a menina que sempre fui. E peço ao fotógrafo que o SESC contratou: "Bate uma foto minha com o Carequinha?" Da primeira vez, entro com todo mundo, já que ninguém quer mesmo sair de perto dele; mas resolvo ficar até o final e, depois que todas as crianças já saíram, consigo uma exclusiva. E digo a ele, orgulhosamente: "Carequinha, tenho 49 anos e sou sua fã desde pequenininha!" Ganho um abraço, um sorriso - e uma dádiva para sempre, eternizada na foto que certamente viverá num porta-retrato, com toda a pompa e circunstância, no melhor lugar que eu conseguir encontrar para ela.

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