terça-feira, maio 31, 2005

Maria Aparecida e o Brasil das Bastilhas

Leio, estarrecida, a história de Maria Aparecida Matos, 24 anos, mãe de dois filhos pequenos, doméstica, pobre - que passou um ano e sete meses na cadeia por tentativa de roubo de um condicionador e um shampoo em uma farmácia de São Paulo.
E volto no tempo. Rola o filme da história e revejo "Memórias de um médico", coleção de incríveis 21 volumes de Alexandre Dumas que relata, em detalhes, os cenários pré, durante e pós-Revolução Francesa, que li avidamente em duas etapas de minha vida.
Mesmo um romântico olhar como o de Dumas não poderia deixar passar os fatos jornalísticos da época; a Bastilha, o templo sagrado das injustiças sociais, era a prisão mais temida em toda a França. Lá atiravam-se, indiscriminadamente, ladrões, bandidos, assassinos, loucos, leprosos, tuberculosos, pobres, mendigos, maltrapilhos, falidos... enfim, tudo o que a sociedade desejava, de algum modo, excluir.
Lembro-me particularmente de uma passagem em que uma criança faminta de apenas oito anos era atirada aos calabouços da Bastilha por tentar roubar um pão. Tentar roubar, bem entendido; a criança seguiu faminta para o inexorável destino de exclusão, doença, morte.
Outros tempos, aqueles? Triste é constatar que não. Temos aí Maria Aparecida; segundo a polícia, advogados e juízes, uma "reincidente". Analfabeta e miserável, cometeu, nas palavras de Augusto Nunes na Folha de São Paulo, o pecado da vaidade. E pagou caro: presa, desprovida, apanhou, perdeu um olho e só saiu mesmo por causa da teimosia de uma advogada, Sônia Regina Arrojo e Drigo, vale mencionar - que para isso precisou recorrer, pasmem, ao Tribunal Superior de Justiça e teve seu pleito acolhido pelo ministro Paulo Gallotti.
Só quero fazer coro, indignada, aos jornalistas que estamparam a história em grandes jornais e revistas: enquanto assistimos a um interminável desfilar de escândalos sem solução, corrupção, aviltamento, vergonha e decadência, uma infinidade de Marias Aparecidas, Josés, Joões, Raimundos Nonatos, apodrecem nas Bastilhas que compõem o nosso sistema penitenciário doente terminal. Doente, aliás, caro para ser mantido doente. A julgar pelo investimento já feito, a cura já deveria ter sido alcançada há muito tempo - e teríamos um caminho para a recuperação e reintegração de muitos brasileiros. Não diria todos porque é difícil medir, nas trajetórias pessoais de presos e condenados, sua capacidade, vontade ou perfil para esse tipo de mudança. Mas a maioria, sim, podia estar construindo nova identidade, tentando mais uma vez.
Degradante é a comparação entre Maria Aparecida e Waldomiro Diniz, no exemplo de Augusto Nunes. Degradante, vergonhoso, humilhante é pensar em quantas pessoas vivem dramas semelhantes ao de Maria Aparecida, enquanto redes informatizadas de fraudadores profissionais depauperam o INSS, os Correios e outros tantos órgãos públicos sustentados com sangrias diárias nos já aviltados salários da maioria dos trabalhadores honestos, "brasileiros que não desistem nunca", tão apregoados em belas campanhas promocionais. Enquanto figurões da República driblam o Imposto de Renda melhor do que Garrincha em seus áureos tempos. E enquanto os prisioneiros e vítimas da impunidade não têm a sorte de encontrar uma advogada decente pelo caminho, que se compadeça deles e lute até o fim, no mar sem-fim de iniqüidades de um sistema judiciário perverso, para conseguir-lhes direitos fundamentais, que deveriam ser garantidos por uma Constituição Brasileira que em 1988 todos nós, secundando o Doutor Ulysses Guimarães, juramos respeitar.
Como disse o meu amigo Helton Fraga, grande jornalista, escritor e blogueiro, "desse Brasil eu quero distância."

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