terça-feira, maio 24, 2005

Em lua de mel com o conhecimento

Hoje assisti - melhor dizendo, participei de um milagre. Milagre dos bons é pequeno no jeito, mas grande demais no resultado. Pois foi bem assim.
Tenho uma amiga bárbara, Solange, que é livreira. Só de ouvir essa palavra - livreira - dá um arrepio de felicidade. Mas ser livreira ou livreiro no Rio de Janeiro, em São Paulo, Buenos Aires ou Londres, é uma coisa. Outra muito, mais muito diferente mesmo, é ser livreira - e há 30 anos, pelo menos! - em Volta Redonda.
Pois a Solange, que tinha sua livraria Veredas (e que nome!) no subsolo de uma antiga galeria, encheu-se de coragem e deu um salto de qualidade; no ano passado, mudou-se para uma loja enorme, com direito a mezzanino e tudo, e recriou a livraria com ares de primeiro mundo: projeto arquitetônico de classe e funcionalidade, o café Diadorim no andar de cima... Claro, uma livraria chamada Veredas só pode abrigar, mesmo, um café chamado Diadorim.
Pois a nossa livreira militante me convidou para testemunhar uma visita especial: ela vem recebendo periodicamente, na loja, todas as turmas do curso primário para idosos, um projeto desenvolvido pela Associação de Aposentados, em parceria com o governo do Estado e escolas públicas municipais. Hoje viria a última turma, o pessoal da terceira série.
Combinei com o Wallace Feitosa, amigo e excelente fotojornalista, para irmos lá fazer uma matéria. Às nove eu já perambulava nos arredores do shopping onde se localiza a livraria, e lá pela nove e dez, mais ou menos, comecei a perceber a chegada de grupinhos de duas, três pessoas. De repente já eram muitas, de olhar alegre e jeito ora bonachão, ora curioso.
Esperei um pouco para subir, até encontrar a loja bem cheia. Os visitantes, acompanhados de duas professoras, percorriam encantados os balcões onde se encontram, distribuídos com bom gosto, vários mundos que eles ainda não conhecem bem. Conversando animadíssimos, folheavam de tudo; de manuais de ópera a Drummond, de auto-ajuda a biografias. No rosto, sempre uma surpresa.
Aproximo-me da professora e começo a função de repórter, toureando um fluir teimoso de emoção. E descubro que Íris está no projeto há três anos, ao lado de outras 14 professoras. "E não quero mais sair!", afirma convicta. Ao todo são 250 alunos com idade média de 60 anos, distribuídos em turmas que vão do CA à sexta série. As aulas são de dia, o que é muito importante para o grupo, e as turmas são distribuídas entre a Associação de Aposentados, o Colégio Estadual Manuel Marinho e o Colégio Estadual Presidente Roosevelt.

Íris conta que muitas mulheres decidiram realizar o sonho de estudar depois de criar os filhos. "Tem casos em que o pai não deixava, outros que o marido é que impedia, ou crianças pequenas", explica. "Agora, que estão mais livres, essas mulheres têm a maior disposição para aprender".
João de Souza, galante em seus 65 anos, é o poeta do grupo. Agarrado a um exemplar de Drummond, diz que "a gente tem que pegar um pouco deles, pra poder escrever as coisas da gente, né?".

Tem outro João no grupo; João Bosco de Abreu, 54 anos, acha dificuldade na leitura. "Vamos tentando daqui e dali, mas Matemática é melhor, não?" E incentiva o xará João a nos propor uma charada de números. Claro que nem chegamos perto de adivinhar - e ele, com orgulho, nos mostra como chegar ao resultado.

Dona Geni Maria, 70 anos, no curso há quatro meses, já tem uma filha formada - Linda, 40 anos e sargento da Marinha - que mora em Roraima. "Agora estou mais livre e posso aprender", comemora. "O mais importante é a saúde. Eu nunca tive nada; só agora é que apareceu um probleminha no coração, mas já estou tomando remédio e pronto." Em Volta Redonda desde os cinco anos, resolveu voltar à escola porque finalmente achou um curso que é de dia. "Eu não saio à noite, sabe? Por medo da violência. Mas de dia é ótimo. Já estou na terceira série e pretendo, se Deus quiser, chegar ao segundo grau, para fazer Secretariado." Ah, e também dar aulas de corte e costura em casa.

Raimunda, 60 anos, e Geralda, 55, estão realizando sonhos. "Procurei estudar porque eu não entrava mais nas conversas lá de casa", conta Geralda. "Eu ficava sem ambiente, só "boiando"! Hoje busco o saber em si, que é uma coisa muito boa."
Raimunda esperou os filhos crescerem e se aposentou. Está na escola para preencher seu tempo e fazer amizades. "Gosto de ler e de cantar", sorri Raimunda, que já participou de atividades corais e se diz muito agitada. "Antes eu não fazia nada, hoje até dançar estou dançando", diz. "Sempre no Baile dos Aposentados". As duas foram atraídas pela propaganda do governo: "pode ser de noite, pode ser de dia, tem que ser agora!" - e resolveram encarar. Ninguém se arrepende.

Em pleno café Diadorim, forma-se uma roda e os profissionais da livraria espalham na mesa vários livros, a maioria infantis (todos já sabem ler, mas o processo ainda é lento). Com felicidade nos olhos, o grupo folheia, folheia, vê, escolhe. A livraria dá descontos grandes nesses exemplares, e eles procuram ver o que mais lhes interessa. Íris fala um pouco sobre alguns autores. Seu João de Souza toma notas em seu bloco recheado de proposições poéticas ainda em gestação. Outras senhoras ocupam-se, num determinado instante, de livros de filosofia. O folhear vem acompanhado de risadas gostosas, camaradagem, comentários. E todos querem comprar pelo menos um livrinho.
Wallace tem ótimas idéias de fotos interessantes para ilustrar nossa matéria, que pretendemos publicar no maior diário local. O pessoal posa na maior tranqüilidade, sempre rindo e participando muito de tudo.
Marcelo, o gerente da livraria, lembra um fato que qualifica como arrepiante: "Numa das outras turmas tinha uma senhora que chegou procurando um livro da Cecília Meirelles. Na hora que ela achou, levantou o livro e saiu agitando, triunfante: "Olha aqui, gente! Olha aqui a Cecília Meirelles!".
Mais dois dedos de prosa e pronto, tenho de ir embora. Mas nem dá vontade: a felicidade daquelas pessoas é tanta que toma conta da gente, emociona, guarda uma viagem recheada de histórias de vida que podem até virar livro... e vão virar: o projeto do curso é, ao final, cada um fazer o seu próprio livro.
O do seu João de Souza, com toda certeza, será de poesia.

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