quinta-feira, maio 26, 2005

O sexo no olho da violência

"O Lenhador", excelente filme com Kevin Bacon, é antes de tudo uma lição sobre violência sexual que vai além das marcas visíveis. Trata, sobretudo, dos estragos profundos, das dores que não se detectam à luz das evidências, da psicanálise ou do comportamento no dia a dia.
Diante dessa questão que é tão recorrente na nossa e em todas as outras sociedades, sempre tive a nítida sensação de ser uma mulher de sorte, por ter tido a chance de escolher quando, como e com quem iniciar e exercer minha sexualidade. Mas com o tempo, e conhecendo melhor a dura realidade da violência sexual, fui percebendo que o problema aflige mulheres e homens, meninas e meninos indiscriminadamente.
Me lembro de ter lido, num exemplar da saudosa revista REALIDADE, uma reportagem que me abriu muito os olhos para a dimensão do problema (e olhe que estávamos na década de 1970!). O texto dizia: não procurem as estatísticas nas classes ditas "menos favorecidas"; o maior índice de abuso sexual de menores concentra-se na classe A, na elite. E os agressores são, quase que infalivelmente, pessoas da família: um pai, tio ou parente próximo. Alguém que a criança conhece e confia.
Estabelecem-se, dessa forma, os mais perversos pactos de silêncio; cercada pelo medo - de alguém descobrir e, pasme-se, de perder o afeto do próprio agressor - a criança aceita a violência, sujeita-se a reviver o drama sempre que solicitada. E vai bloqueando as zonas de sentimento na alma, isolando a melhor parte de si - o dar-se, a inocência diante do afeto, a naturalidade da alma. A deformidade se alastra de tal forma que, mesmo que se passem anos e que a parte agredida se liberte daquela situação específica, a zona de silêncio lá dentro permanece. Uma estranheza, uma ausência diante das alegrias simples, comezinhas, de quem não imagina como é sentir-se assim.
Como Vicki, a namorada de Walter, o personagem de "O Lenhador", ou Robin, a menina de 11 anos que quase o leva a reincidir no crime; a resignação de uma dor galvanizada, que ficou paralisada na raiz. Que a mulher já adulta combate com um comportamento aparentemente agressivo e quase masculino, enquanto a criança se limita a chorar e mesmo agradecer, com um abraço, a um homem que quase abusou dela simplesmente porque não o fez. O que me faz lembrar, também, outra cena igualmente triste de um outro belo filme, "O Padre" (1994, Inglaterra, direção de Antonia Bird): o momento em que a menina que sofria abuso do próprio pai, e que ele tentou proteger, é a única em sua fila de comunhão, contra toda uma comunidade que o rejeitara depois de ele ter se envolvido num escândalo que revelou sua homossexualidade, noticiado por um tablóide sensacionalista.
A violência sexual contra crianças, mulheres, homens, homossexuais, minorias - enfim, contra qualquer ser humano - precisa ser combatida sem tréguas dentro das casas, dentro dos segredos, dentro dos meandros onde se esconde. As entidades que militam nos direitos humanos precisam descobrir formas mais eficientes de recrudescer esse combate, para que se possa tratar as marcas, penetrar no silêncio e devolver, de alguma forma, a liberdade ao coração do agredido.
Um agressor como Walter, o criminoso do filme "O Lenhador", que luta com todas as suas forças para se livrar do próprio destino, sem dúvida é alguém que merece proteção, crédito, uma oportunidade. Afinal, nunca matou ou machucou fisicamente - e se horroriza com aquilo que matou ou machucou por dentro, quando se vê diante de dores como a de sua namorada ou da garota Robin. Mas o perfil de Walter não se encaixa totalmente no do estuprador, do sádico ou do pedófilo frios, irracionais e assassinos que vemos todos os dias nos jornais; não se pode, desavisadamente, tomá-lo como modelo para a realidade trágica que ocorre todo dia. É preciso punir sem complacência ou falsa humanidade a violência sexual. Se estamos querendo fazer um mundo um pouco melhor, devemos dar a esse problema a atenção que merece, independentemente de poder, riqueza ou classe social. Violência sexual não é apenas crime, é destruição. E nossa sociedade precisa construir seres humanos livres, plenos e mais felizes.

Nenhum comentário: