quarta-feira, junho 01, 2005

Maria, cheia de graça

Choque. Profundo, de remexer na poltrona com um desconforto monumental. De sentir frio, tremer, sentir a ponta do estômago revirar - foi só um pouco do que senti ao assistir à cena em que a jovem Maria, 17 anos, personagem do filme que dá título a esta crônica, engolir 70 papelotes de cocaína para, no papel de mula, empreender sua primeira viagem de "entrega" a Nova York.
O que começa com características de um típico filme latino - sem maquiagem, som e luz longe de serem perfeitos, ambientes reais - toma, de repente, um fôlego enorme ao reproduzir sem cortes os dramas do submundo das drogas e os dramas individuais de pessoas sem perspectiva.
Maria passa dos espinhos das flores aos espinhos da vida de mula com um desassombro que até espanta, pela pouca idade que tem. Preparadora de flores numa espécie de Barbacena colombiana, tem os dedos sempre cobertos com plástico, mas mesmo assim furados de espinhos. Mora no subúrbio com a mãe, a avó, a irmã e um sobrinho ainda bebê. Como se não bastasse, ainda engravida do namorado Juan, a quem não ama.
Daí para o contato com o atravessador, através de Franklin, um rapaz que conhece num baile local, é um pulo.
O engolir das drogas é um capítulo à parte. Uma coisa é você saber que existe, ler num jornal, ouvir falar; outra muito diferente é assistir à laboriosa, detalhada operação em seus mínimos detalhes. Parece que é a garganta da gente que dói, que a destituída jovem que luta para manter uma atitude corajosa poderia ser alguém da família.
O filme é fundamental porque tem transparência de verdade, todo ele é possível de fato. A Colômbia, afinal, é ali na esquina mesmo. E mulas não as há somente lá, para nossa tristeza, pois somos parte da rota. Uma menina como Maria pode, neste exato momento, estar passando pelo mesmo pesadelo em qualquer grande cidade brasileira.
Pesada como é, com seus 500 quilos de dor e mais de 500 anos de culpa e sofrimento, a realidade do Terceiro Mundo precisa ser enfrentada. E urgentemente, enquanto ainda há remédio. Mais uma vez, a arte imita a vida com uma perfeição que machuca, que corrói, que aponta a ferida.
Mais do que nunca, é tempo de acordar.

Um comentário:

Anônimo disse...

esse filme também me chocou, ou talvez mais precisamente, me incomodou muito, talvez por essa desconcertante honestidade, essa arrastada resignação que nos deixa revoltados e paralizados. Revi-o essa semana mesmo com meus filhos, as reações foram variadas, mas ninguém ficou indiferente.
Outro filme que me chocou e me irritou profundamente, foi uma reportagem investigativa extremamente bem construida, contando com riqueza de detalhes e profundeza a saga da monstruosa multinacional Monsanto e sua tragetória de corrupção, destruição e morte. Foi feita por uma jornalista francesa independente, Marie-Monique Robin, ela mesma filha de camponeses. Vale a pena ser visto e discutido, principalmente nos países emergentes como o nosso. Não sei se foi traduzido para o português.