segunda-feira, maio 30, 2005

Domingo, 29/5 - Arte em jornada quase tripla

A DANÇA QUE NÃO VI...

Confesso-me uma das pessoas realmente felizes com a inelegibilidade do casal de Garotinhos que pseudo-evangeliza nossas vidas há tanto tempo. Mas tenho que admitir: Teatro Municipal a R$ 1 é uma receita milagrosa que fez despencarem de casa, na manhã de ontem, muito mais que as 2.300 pessoas que lotam uma das mais belas casas de espetáculos do nosso país.

Cheguei ao teatro perto das onze da manhã, onde aconteceria o espetáculo "Coreografismos", da Cia. Staccato de Dança, que eu muito queria ver. A fila - que maravilha! - dava uma volta inteira no quarteirão do teatro, mas não me preocupei. Cheguei até o final e ocupei meu lugar. Famílias inteiras se acotovelavam na esperança de, pelo menos, conhecer o teatro. Pessoas de todas as idades, perfis e procedências levantaram cedo e, em muitos casos, empreenderam verdadeiras "viagens" dos bairros afastados até o centro, para curtir esse programa.

De repente, alguém espalha o bizu: já lotou! Não acreditei: afinal, 2.300 lugares, dança contemporânea... sei não, pensei, vale pagar pra ver. Bem, eu paguei, mas não vi: lotação esgotada mesmo, de verdade. Frustrada por não ver a Staccato, não tive remédio senão pegar o metrô e tornar à casa. Mas, no fundo, com uma sensação boa, de que, aqui no Brasil, em se plantando arte, tudo dá mesmo! A resposta da população não segue o padrão óbvio: todos querem o alimento da alma - e, quanto mais apurado, melhor!

E viva!


... E A DANÇA QUE, DE FATO, VI

Às cinco da tarde, volto ao Teatro - dessa vez, com ingresso na mão e certeza de entrar - para ver "A Bela Adormecida", com o balé da casa e adaptação coreográfica do tcheco Jaroslav Slavicky, sobre a imortal coreografia de Marius Petipa.

"A Bela Adormecida" estreou no dia 15 de janeiro de 1890, no Teatro Maryinski de São Petersburgo (a casa do célebre Balé Kirov), com coreografia de Marius Petipa e música de Tchaikovsky. No Teatro Municipal, entre 1919 e 1998, foi apresentado 20 vezes. Esta, portanto, é a temporada da "maioridade" do balé no Brasil.

"O tema é tão poético, tão favorável à inspiração musical, que fiquei seduzido por ele. Escrevi com aquele prazer e aquele calor que são quase sempre garantias de bom resultado", escreveria Piotr Ilich Tchaikovsky à sua protetora Nadeja von Meck no verão russo de 1889, quando dava os últimos retoques na instrumentação da partitura de "A Bela Adormecida" (informação da pág. 11 do programa do balé).

De fato, é poético, e muito. E o nosso Ballet do Teatro Municipal, sem dúvida, está cada vez melhor. Cenários primorosos do mestre Hélio Eichbauer, que sabe com o ninguém confeccionar magia e "iluminar" os palcos brasileiros com sua genialidade, belos figurinos, corpo de baile em forma, ótimos solistas. Ontem, a princesa Aurora e o príncipe Désiré foram vividos por Tereza Augusta e Francisco Timbó, ambos competentes e muito à-vontade um com o outro. Tereza Augusta tem muita graça pessoal, carisma, vivacidade - e, claro, técnica também. Se a Francisco Timbó falta dramaticidade, sobram concentração e técnica perfeita. De todo modo, a alquimia funcionou muito bem.

A interpretação coreográfica de Jaroslav Slavicky, ainda que arrojada, em alguns momentos é desagradável, "dura" demais - e corta os movimentos secamente ao meio, cerceando um pouco os bailarinos. Como isso ocorre quase sempre nas horas em que a música não ajuda, o efeito de quebra se agrava e prejudica um pouco a fluidez.

Destaque para Deborah Ribeiro, no papel da Fada Lilás, Karina Dias, como a Pedra de Brilhante, e Rodrigo Negri, como Pássaro Azul.

Teatro cheio, mil crianças, muito barulho e alegria; os preços populares (os ingressos mais caros, para platéia e balcão nobre, custavam R$ 10) sem dúvida contribuem para devolver ao Municipal um colorido que há muito tempo não se via, e que dá muito gosto de sentir.

TRIUNFO SILENCIOSO

Devo ao meu amigo Fábio de Mello, consagrado coreógrafo e artista múltiplo que faz virar ouro artístico tudo aquilo que toca, o maior presente desse domingo: assistir à peça Triunfo Silencioso, protagonizada por Edwin Luisi e Herson Capri.

Teatro do Espaço SESC, em Copacabana, ingressos esgotadíssimos, consigo meu convite por obra e graça do incansável Fábio, que me disse simplesmente, durante o agradável almoço em sua casa: "Você não pode perder isso." E, mãos à obra, deu alguns telefonemas. Em meia hora, meu lugar estava garantido.

Saí do Teatro Municipal voando como a Fada Lilás de "A Bela Adormecida" e, graças aos préstimos de um excelente taxista, aterrisava no SESC quinze minutos depois. Mas valeu a pena.

A correspondência de dois amigos e sócios numa galeria de arte em São Francisco, Califórnia - um judeu, que permanece nos EUA, e outro alemão, que torna à pátria - é o tema dessa peça que fala, acima de tudo, da humanidade nas pessoas.

Os protagonistas não são personagens idealizados, entes acima do bem e do mal: são pessoas comuns, sujeitas a tudo de céu e de inferno que todo mundo tem dentro de si. E é aí que reside o seu fascínio: são gente como eu, como você, capazes de literalmente qualquer coisa.

Mas como assim, nós "não somos" capazes de qualquer coisa? Somos, sim. Perdoamos de rabo-de-olho, somos incorretos o tempo todo, não esquecemos. Adoramos ver alguém levar um tombo, temos prazer de sujar a roupa nova da prima chata. E destruímos também.

Max, o judeu, toma conta dos negócios da dupla nos EUA, que vão de vento em pôpa. Martin, o alemão, que adora se comportar como rico e privar da companhia de pessoas importantes, resolve educar seus cinco filhos na Alemanha e se deixa seduzir pela aventura hitlerista. Muda. O que antes era terna amizade entre dois grandes companheiros transforma-se em fria relação comercial. Martin, nos quadros do governo, teme ser prejudicado por ter um amigo judeu, de quem confessa gostar "apesar da sua raça".

Max tem uma irmã, jovem atriz que, no passado, se envolvera com Martin e que, agora (é 1933) está atuando com sucesso na Alemanha. O irmão, aflito com a crescente perseguição aos judeus, confia-a ao amigo Martin - que, para preservar sua posição social, deixa-a morrer nas mãos da SS, praticamente na porta de sua imponente residência.

"Eu mesmo cuidei do enterro", escreve Martin a Max. "Mas, como você mesmo disse, era ela muito tola..."

A essa altura, eu esperava o triunfo da relação opressor-oprimido: um onipotente e prestigioso nazista, no auge da Alemanha hitlerista pré-Segunda Guerra, tripudia sobre o indefeso e agora inconveniente amigo judeu, que afinal está muito longe, na América, nada pode fazer...

Ledo engano. Aliás, ledíssimo. Max vira o jogo com uma arma terrível, quase nuclear: cartas comprometedoras. "Querido Martin, Vovó Rivka vai completar cem anos - Mahzeltov! Você não vai passar um telegrama?"; "É pena que você não pode vir pra festa. Sabem quem vai estar lá? O tio Schlomo!"; "Prima Ruth teve um bebê de quatro quilos! É lindo! Tia Sarah acha que você pode estar magoado com alguma coisa. Nem agradeceu os presentes todos que enviamos!"...

É a vez de o desesperado Martin - separado de Max por um engenhoso e belo cenário que simula um mapa cortado pelo mar - implorar, ajoelhar-se, rebaixar-se e evocar a velha amizade, "para que eu possa me salvar enquanto é tempo (eu acho)..."...

"Adeus, meu querido amigo", sentencia Max entre lágrimas de dor, ao finalizar a última carta. Que retorna ao remetente com o fatídico carimbo de ENDEREÇO DESCONHECIDO, presságio de um trágico fim.

Para ambos; de um lado do mar, um Max desolado, destruído ao destruir, com seu triunfo silencioso, o amigo a quem amava. E de outro, Martin, provavelmente enviado a um campo de concentração qualquer. Apenas seres humanos, capazes de qualquer coisa para defender seus interesses ou a sua dor. E com direito a torcida da platéia, que tomou partido e até torceu para que a vingança do judeu Max fosse maligna, como diria o "vampiro brasileiro" de Chico Anísio.

Mas as risadas que as insistentes cartas "judias" de Max a Martin suscitam se desvanecem, perto do anunciado final. Fica o amargo gosto de sangue humano, de calor humano, de fraqueza humana - matérias de que, afinal, todos nós somos feitos.

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