quinta-feira, junho 09, 2005

Futebol, política, saudade

Ódio e amor em campo

Optei por não ver o jogo entre Brasil e Argentina. Salvei-me, assim, de uma reação exacerbada típica de um paradoxo que só acontece, mesmo, no futebol: o ódio eterno aos vizinhos de la Plata que me acomete sempre que eles entram em campo contra a nossa seleção.

Gosto particularmente de Buenos Aires, tenho grandes amigos argentinos e aprecio imensamente sua educação, cultura, jeito de ser em seu próprio país. Tenho inveja do bater de panelas que sempre ecoa por lá quando o governo sai da linha - e que aqui a gente não vê nem por reza braba. Mas na hora do futebol, não tem jeito: esqueço tudo, até o azul da camisa acho feio. Nem de longe consigo compará-lo ao rio que passou na vida do Paulinho da Viola e do Brasil inteiro, matizado pela Portela. Os odientos portenhos não me enganam nem com sua quase sempre bela figura.

E convenhamos, encarar derrota pros argentinos é duro. Amanhecer com o verde-amarelo pingando no varal, enquanto imaginamos as insuportáveis bandeiras azuis sendo enfunadas por toda parte, é de amargar.

Por isso troquei, conscientíssima, o campo de futebol por um reprise do C.S.I. Pelo menos ali, o crime é ficção.

Más companhias

Quando criança, ficava fula da vida se meus pais sequer insinuassem a possibilidade de alguém me influenciar sobre qualquer assunto. Considerava isso um insulto à minha personalidade e independência. Eu acreditava, então, que tinha cabeça e produzia meus próprios pensamentos, idéias, conclusões. Por isso mesmo, nunca acreditei em más companhias, embora muitas vezes as tivesse. Naquele tempo como agora, gostava e aceitava alguém "porque sim", não por ser bonito, feio, careta ou maluco. E sempre convivi com todos eles, sem que isso afetasse negativamente o meu projeto de vida.

Tarso Genro e Genoíno, em momentos diferentes, disseram nos últimos dias que o problema do PT e do Presidente Lula são as "más companhias". Será que os prestigiosos companheiros de tantas lutas realmente vêem Lula como alguém capaz de sofrer influências desse tipo?

Não. Lula jamais chegaria aonde chegou se não fosse, ele próprio, capaz de mobilizar, influenciar, cativar e convencer. Tenho desprezo por essa pecha de inocente útil que a nossa já tão manchada elite política tenta imputar ao presidente. Tenho respeito por Lula ontem, hoje e sempre - e confio em sua capacidade para gerir a crise atual, uma tremenda oportunidade de restabelecer a confiança da população nas suas instituições democráticas. Se ele cumprir o prometido - cortar na carne, dar a mão à palmatória, abrir a caixa preta do PT - os efeitos se propagarão, beneficamente, por toda nossa economia e pelo sistema político também.

Lula e o governo podem sobreviver às más companhias. Desde que mostrem que não são tão manipuláveis como se quer fazer o povo acreditar.

Tempo de visões

Estou numa época de ter visões: onde quer que eu vá, tem sempre um senhor de idade parecido com meu pai.
E olha que já faz quase um ano que ele morreu!
Tá certo, tá certo, toda pessoa que perde um pai tem lá suas fases. E tenho de admitir que, neste momento, estou na pior delas desde que o inevitável aconteceu.
Meu pai tinha dois cânceres mas, de constituição forte e descendente direto de alemães e italianos, praticamente não sofreu. Não teve as horríveis dores prenunciadas em detalhes por médicos inclementes com a tristeza alheia, por mais que muitos tipos assim se esmerarassem em nos "preparar" com requintes de crueldade. Para ele, as dores eram musculares, e passavam com o mais simples analgésico. Espírita, preparou-se condignamente e desencarnou com delicadeza, sem traumas, suavemente.
Não creio que me anestesiei durante o processo, mas devo dizer que todo o tempo eu parecia envolvida por um grande e macio colchão de conforto. Passei por tudo confiante, apenas triste, como seria normal.
No enterro, um grande amigo pessoal, Carlinhos, falando a meu pedido, comparou a partida deste mundo a uma viagem de veleiro: a gente parte daqui e, do outro lado do horizonte, chega à vida espiritual. Gosto dessa imagem, que combina com as mais firmes convicções que aprendi a cultivar. E estou certa de que, em seu veleiro, meu pai fez muito boa viagem, apesar do vazio que deixou por aqui - e que o tempo, com suas artimanhas, acaba por aprofundar.
Meu pai passou os últimos seis meses de vida em minha casa, num quarto improvisado na sala, com o conforto que pudemos lhe oferecer: comida a tempo e a hora, uma boa cama de hospital que está na família há uns cinqüenta anos e que já serviu a muitas causas nobres, uma televisão que ele mal podia ver porque a catarata não deixava, companhia, os remédios necessários e até alguma mordomia eventual: cervejinha, pimenta e até carne de porco.
E a casa, com suas paredes aparentemente inocentes, ainda guarda o cheiro dele: é a primeira coisa que sinto, todas as noites, ao virar a chave na porta. Mesmo com o tempo e todas as mudanças que fizemos no ambiente.
Estou tranqüila, ainda: o desenlace e o período que o antecedeu não me pareceram injustos com a vida e obra do meu pai, homem culto e de personalidade cativante, mas de gênio forte, qualidades e defeitos como todo mundo.
Mas vejo gente na rua parecida com ele. No ônibus, andando, nas praças, em toda parte. E me lembro de como ele gostava de rodar a cidade e encontrar um ou outro, mesmo que fosse pra reclamar de alguma coisa. Penso também nos livros que a catarata o impediu de ler, no fim da vida.
Meu pai era um espírito livre e influenciou definitivamente a minha formação. Durante anos foi meu confidente, o primeiro na linha da confiança, antes de qualquer melhor amiga. O estreito relacionamento, povoado pelo encantamento que a sua imaginação prodigiosa e o seu talento para desenhar me despertavam, causava ciúmes extremos em minha mãe e, muitas vezes, en minhas irmãs menores. Mas eu não ligava e não sabia resolver politicamente a questão, então ficava assim mesmo. Em meu pai encontrei o companheiro que me apresentou ao cinema, que analisava a história do mundo e desenvolvia o meu intelecto. Talvez por isso eu tenha me tornado, assim, "meio homem" - ou seja, dona do meu nariz, resolvida, capaz de tomar atitudes e procurar meus próprios caminhos pessoais e profissionais, sem jamais aceitar depender de quem quer que fosse, nem mesmo dele.
Com o tempo, essa história se transformou um pouco; os conflitos inevitáveis, na maturidade, acabaram me aproximando mais de minha mãe, personalidade interessante e radicalmente oposta à dele. De todo modo, os laços fundamentais ficaram e sempre marcaram um relacionamento de respeito e carinho.
Hoje, quase um ano depois, sempre que me vejo diante de alguma situação a resolver, procuro me lembrar o que ele me diria a respeito. Procuro me lembrar também das informações preciosas, dos detalhes, das minúcias que o seu grande conhecimento me deixou, e guardá-las preciosamente. Procuro, sobretudo, não sofrer desnecessariamente com a perda, mas aceitá-la como parte da vida e reconhecer que o mais importante, sem dúvida alguma, foi a felicidade de ter convivido com ele por 49 anos. Minha memória emocional, meu amor e meu respeito por ele não são lembranças difusas, mas fatos reais, concretíssimos, de uma vida inteira muito bem vivida. Então, mesmo que hoje me emocione diante de muitos velhinhos que podem ou não ser parecidos com ele (a fase pode enganar, sabe como é), sei que nenhum, jamais, será o que ele foi e é para mim.
E por isso sinto-me agradecida e até mesmo feliz na minha saudade de filha.

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