segunda-feira, junho 06, 2005

Temos de inventar um jeito novo de ser brasileiros

Com tantas denúncias explícitas e descaradas de roubos, mensalões, pagamento de deputados para votar contra uma CPI (1 milhão e meio pra cada um) - que figuram ao lado da mortalidade infantil de indiozinhos e de um crescente universo de miseráveis e, também (por que não?), da inauguração do shopping da Daslu, exclusivo para a sortuda parcela dos brasileiros aquinhoados com fortunas na casa dos milhões de dólares - ando pensando na matéria de que é feito, de fato, o brasileiro.
Afora a urbanidade de "boa praça", a camaradagem de primeira hora e a alegria de viver que resiste a impressionantes pressões econômicas e ambientais, em que seríamos diferentes de um cidadão argentino, boliviano ou peruano que bate panelas, grita, esbraveja e defende a sua cidadania com unhas e dentes?
Fico a pensar quando vejo aquela série de comerciais que dizem "O melhor do Brasil é o brasileiro." Todo mundo acredita nisso: os publicitários que criaram, os patrocinadores que colocam no ar - menos o "biografado", coitado. Este deve achar que é o pior entre os piores, que não tem valor nenhum, que tá "jogado fora no lixo", como dizia uma canção de nem tanto tempo atrás.
E tem tantas razões para isto! Todo dia vê morte na TV: morte de bandido e de mocinho, truculência policial, vítimas de bala perdida, vítimas de abuso sexual... E também vê imponentes vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores!!!, roubando descaradamente e declarando a legalidade do roubo, metamorfoseada em "brecha na lei". Vê um ministro da Justiça empolado e distante, que não parece enxergar as indecências financeiras divulgadas a olho nu, a todo instante, sobre esse, este ou aquele alto funcionário do governo ou de autarquias.
Se o brasileiro conseguisse mesmo acreditar que ele é o melhor do Brasil, já estaria nas ruas. Batendo panelas, buzinando, bicicletando, exigindo que a legalidade ocupasse os gabinetes, limpasse a sujeira, usasse dinheiro público que sai do salário dos mais pobres (rico não paga imposto, recebe de volta) para dar fim à fome, à violência, para reestruturar o sistema de saúde, para dar escola, diversão e arte às crianças de todos os coloridos, credos e camadas sociais.
O que é que a gente faz, hoje? Dá muita raiva, dá muito desgosto e tristeza. Foi muito difícil elegermos um presidente legítimo, alguém da nossa confiança, alguém com uma história verdadeira, um brasileiro de fato como os outros. Lula seria o nosso grande orgulho. Lula é o exemplo vivo do brasileiro que deu certo sem virar americano. E no entanto, nesse viscoso mar de lama - que, certamente, se arrasta há muito mais tempo que o seu mandato e por meandros muito mais complexos do que se pode imaginar à primeira vista -, está sendo levado.
Me lembro da entrevista do Lula, esse companheiro, ao Globo Repórter, assim que se elegeu presidente. "Eu não posso errar. Todo mundo pode, mas eu não. E eu não vou errar." Acenava o presidente com o peso da responsabilidade não só do cargo, mas do preconceito em razão de sua origem humilde, que até hoje é alimentado por dezenas de piadas de mau gosto.
Mas não. Do Lula que virou o Brasil de cabo a rabo no ABC paulista há que ter sobrado o melhor: aquela fibra, aquela combatividade, aquela transparência. Recuso-me a acreditar que o cerne, a alma verdadeira, tenha acabado, desaparecido nos túneis escuros de um Planalto contaminado. No ano passado vi o Ziraldo dizer, na Festa Literária Internacional de Paraty: "Não posso abandonar o Lula agora. E sabe por que? Porque ainda não acabou."
Ainda não acabou, Presidente. E portanto a gente espera que o Sr. tome uma atitude condizente com a sua história, de respeito aos cidadãos estupefatos diante daquilo que ouvem no Jornal Nacional e que lêem nas páginas das revistas, jornais e blogs Brasil afora.
Mas voltando àquele comercial, venho aqui propor um movimento popular de base mesmo, onde os indignados façam tudo o que estiver ao seu alcance para restabelecer o caminho da legalidade, da dignidade, da cidadania, da justiça e da igualdade para este país. Acho e acredito que "quem muda o Brasil é o brasileiro." Enquanto a sociedade não se convencer disso, e não agir - seja partindo para as soluções caseiras, como parcerias para resolver problemas localizados e aparentemente pequenos, seja atormentando os parlamentares com cartas, telefonemas, faxes, e-mails, seja escrevendo na internet, seja atuando em ONGs, seja batendo panelas - vamos ficar a ver navios, a ver os dólares brilharem nas mãos afiladas dos endinheirados, a ver crianças morrerem de fome ou sem atendimento médico, a ver deputados se elegerem para confiscar o que pertence ao povo.
Se "quem muda o Brasil é o brasileiro", vamos criar fóruns de discussão, vamos organizar os problemas e movimentar este país em busca de soluções. Já é tempo de mudarmos aquilo que podemos mudar, e não ficar esperando eternamente (eu já tenho 49 anos e ouço promessas desde bem antes do golpe militar, fala sério!) que a "recuperação da economia gere empregos, etc. etc., blá-blá-blá".
Vamos desarmar o nosso coração, libertar a nossa inteligência e aplicar a nossa energia de cidadãos conscientes, o nosso senso de urgência, numa grande usina de realizações que nos façam sentir, novamente, orgulho de ser brasileiros.
Que cada um comece pequeno, mas a seu modo, em parceria com outros com o mesmo ideal. Que cada um se dedique à causa pela qual sente a maior simpatia: trabalho, emprego, fome, moradia, educação, arte, meio ambiente, segurança, auto-sustentabilidade... Não faltam opções. Faltam, sim, soluções de verdade.
Se já fomos quilombo, podemos atualizar essa brilhante idéia para o século 21. Sim, porque a exclusão continua mais atual do que nunca, então está na hora de agirmos sem olhar para trás.
Vamos pegar nas armas do desenvolvimento: firmeza, decisão, trabalho, conhecimento, esperança. E recuperar o Brasil que pode ser nosso, parecido com o que a gente sonhou, deseja e quer.

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