sábado, junho 25, 2005

Aventura literária digna de histórias de cavalaria

Desde o início de julho que estou vivendo uma verdadeira jornada do herói para garantir um lugar nas 20 mesas literárias programadas para a FLIP deste ano, em Parati.
É estranho; nem mesmo Dom Amadis de Gaula, o bom cavaleiro português, entenderia como ingressos desaparecem em minutos, na velocidade da Internet, por mais diligente, ágil e interessado que seja o internauta literário.
No dia 4 de junho, quando os ingressos para a cobiçadíssima Tenda dos Autores foram disponibilizados para venda, tudo - absolutamente tudo! - se esgotou em menos de duas horas. No entanto, ao longo da semana seguinte, voltou a haver disponibilidade para algumas mesas. Paciente, eu entrava todos os dias para ver se aparecia alguma coisa e, nesse pinga-pinga, consegui a inacreditável proeza de comprar ingressos para 16 das 20 mesas. Ficaram faltando,claro,as mais disputadas: MVBill/Luiz Eduardo Soares, Salman Rushdie, Ariano Suassuna e Jô Soares.
Na manhã de hoje, sábado, entrei no site às 9:40 da manhã e - maravilha! - vi que estavam à venda os ingressos para a Tenda da Matriz, com a inacreditável oferta de 1.400 novos lugares para cada sessão, além do show de abertura com o amado Paulinho da Viola e da homenagem a Clarice Lispector.
Pois clico na primeira mesa que me falta, a 10, e começa a decepção: não há disponibilidade de entradas inteiras. Só meia - privilégio a que, infelizmente, não tenho direito. Telefono para o 0300 das Americanas para tentar descobrir por que não há entradas e fico sabendo que acabou! Em menos de uma hora!
Estarreço-me: como é que pode? Estarei condenada a me contorcer na fila de entrada, sem esperança de ouvir o que esses quatro grandes têm a dizer?
O que me consola é um único talvez: pode ser que as Lojas Americanas estejam guardando ingressos para liberar em doses homeopáticas, a cada dia. Foi assim que consegui meus 16, e pode ser que, nos próximos dias, consiga também os 4 que me faltam.
Como esperança é a última que morre, certamente estarei online todas as manhãs, tentando preencher essas importantes lacunas no cardápio de minha FLIP 2005.

Críticas à parte...

... gostei de experimentar a FLIP 2004. Foi um bom mergulho, uma agradável exposição a rios, mares e cascatas de conhecimento, discursos instigantes e desafiadores, momentos de grande emoção até. Um balcão improvisado e democrático garantia a compra de ingressos dos desistentes sem qualquer ágio, o café era um espaço franqueado igualmente a mortais e imortais, o frenesi causado pela presença de Chico Buarque foi um capítulo (aliás divertidíssimo) à parte. Eu só fazia entrar e sair das tendas, sem tempo para me dedicar às belezas de Parati, mas valeu a pena. Meu espírito se multiplicou pelas calçadas de pedra rolada, quebrada e pontuda, pelas paredes seculares e pelo abandono das igrejas e da maior parte do conjunto arquitetônico. A FLIP cutucou, com vara curta, o germe literário adormecido, que se alimentava de passado e passou a correr atrás do futuro. Por isso, quero estar lá este ano de corpo e alma, todos os dias, para beber de tudo um pouco e seguir o meu destino com as palavras.

De aposentar-se

Tomei a decisão que, mais dia, menos dia, quase todo mundo precisa tomar: requeri, e consegui, a aposentadoria por tempo de serviço. Trinta anos completos e redondos de atividade, contribuições ao INSS pelo teto permitido, documentos na mais perfeita ordem, procurei o posto da previdência que funciona dentro da minha empresa e dei entrada. Doze dias depois, recebo a informação de que me foi concedido um benefício de - pasmem! - R$ 1.396,77. Choque, susto, pane. O INSS alega que o teto hoje é R$ 2.400,00, mas eu só vou receber 60% disso. Investigo e descubro que o "fator previdenciário" - depreciativo índice que o órgão inventou para não pagar a ninguém o suposto teto - foi o vilão da minha história. Aos 49 anos, tenho (nos cálculos deles) uma expectativa de vida de mais 29 anos, e por isso devo receber menos! A julgar pelo rigor dos critérios, só uma pessoa com 99 anos de idade receberia os R$ 2.400,00 com os quais o governo acena para recompensar vidas inteiras de dedicação à construção de um país.
Aposentar-se no Brasil, constatei na pele com tristeza, é uma porta de entrada para a indignidade, o desrespeito e a exclusão. Precisamos de um novo olhar para com tantos velhinhos que vemos trabalhando aqui e ali, em tarefas aparentemente menores e muitas vezes pesadas demais para eles. Precisamos enxergar nessas pessoas o retrato de um país que desvaloriza e desmerece o trabalho, a paixão, o interesse de seus filhos pelo crescimento e pela sociedade em si. Porque o INSS, historicamente um campeão de fraudes de toda sorte, é o responsável pelo destino de todos esses seres humanos que vêm sendo privados do direito de sobreviver dignamente. O mesmo INSS paga régias aposentadorias integrais a um sem-número de privilegiados, afilhados, apadrinhados, políticos ou ex-políticos. Mas não tem qualquer interesse nos idosos que padecem e morrem nas filas dos hospitais, nem nos vendedores ambulantes, vigias noturnos ou serventes de obras que se multiplicam a cada ano, todos acima dos 60 anos de idade. O mesmíssimo INSS cujas contas nunca batem, e que freqüenta repetidamente as manchetes dos jornais e noticiários, em função dos desatinos administrativos e roubos recorrentes.
No momento em que vivemos essa imensa crise de credibilidade do aparelho político-partidário, das instituições políticas,legislativas e da justiça, vale a reflexão. Tenho um velho amigo, experiente e viajado, que costuma dizer que corrupção existe em todos os países do mundo; no entanto, naqueles países onde os problemas básicos da subsistência estão resolvidos - ou seja, ninguém passa fome, sede ou frio, todos conseguem sobreviver com seu salário, os aposentados inclusive - esse problema pode ser tolerado. Num país como o Brasil, esmagado pela fome, miséria, violência e outras mazelas, corrupção seria, no mínimo, caso de paredão.
Em que luta estamos, desde um tempo em que podíamos diferenciar esquerda de direita? Qual a paixão que pode nos mover hoje, quando as grandes cidades são reféns do crime organizado e os cidadãos, reféns das quadrilhas que emanam do Planalto? Não conseguimos sequer comemorar a vitória de um sujeito como Lula, com um passado respeitável de lutas e compromissos. Não podemos nos engajar na reconstrução brasileira, se não sabemos para onde vai o dinheiro público, farto e generoso para tantos Robertos Jefferson, e extremamente avarento para com um aposentado idoso, que depende do INSS para, mal e mal, sobreviver.
A sociedade civil precisa tomar as rédeas e cuidar de seus problemas, para encontrar uma saída que nos permita reencontrar o respeito por nós mesmos.
Hoje está difícil. E segunda-feira ninguém sabe o que será!

Diversidade, respeito e alegria

A Parada Gay do Rio é amanhã, e eu não estou lá para ver. Que pena! Apesar do que há de politicamente correto na recentemente adotada sigla GBLT - Gays, Bissexuais, Lésbicas e Transgêneros - toda a gente chama, mesmo, de Parada Gay o evento que comemora, simplesmente, a liberdade de ser o que quiser. Liberdade, aliás, que todo cidadão deveria ter e aproveitar, independentemente de sua história sexual.
O prazer dessa liberdade é poder festejar a alegria e o direito dos outros, ainda que isso não nos afete diretamente, com o mesmo entusiasmo. Uma Avenida Atlântica repleta de famílias e pessoas de todas as tendências vai se colorir de uma euforia muito especial. Afinal, liberdade é liberdade, e é pra todo mundo, não? Como eu posso ser livre, ou achar que sou livre, se alguém é privado de sua liberdade por ser homossexual, por ser comunista, por ser ateu, por ser qualquer coisa? Está aí o segredo do Orgulho Gay: é um sentimento que contagia porque envolve a coragem de ser. E quantos de nós exercitam adequadamente essa coragem?
A maravilha do ser humano é justamente a sua diversidade, a capacidade de mudar e crescer a todo momento, e de se transformar também. E todos nós somos um pouco tudo e nada. Valores como caráter, princípios, generosidade, dedicação ao próximo, são o que temos a legar em nossa passagem. Sexualidade não é valor, é opção pessoal e circunscrita ao universo pessoal de cada um. Por isso, e cada vez mais, vale ir às ruas para prestigiar, e comemorar, o Orgulho Gay como se comemora um aniversário, o diploma da faculdade, o nascimento de alguém. Por isso é tão bom estar na Avenida Atlântica num belo dia de junho como amanhã, para aplaudir a liberdade que, gloriosa, toma as ruas com todo o seu vigor, charme e carisma, "gay" ou "straight".

quarta-feira, junho 15, 2005

Seis longos dias

Desde 22 de maio, quando criei este blog, viciei-me em comparecer a este espaço com crônicas diárias. E de repente, seis dias de ausência! Nada proposital, mas um pouco assustador. Dá idéia da velocidade do tempo - segundo dizem, acelerada pela tsunami que devastou a Tailândia.

De volta, o que mais salta aos olhos é a devastação política por que passa o país. Todo brasileiro tem a impressão de que sabe dessa safadeza, que isso é natural, que político é assim mesmo. Mas na hora de encarar fatos irrefutáveis, entrevistas, depoimentos, detalhes sujos, a coisa pega. Tenho um amigo que uma vez me disse que corrupção, em países onde ainda morre gente de fome, devia dar paredão. É um ambiente surreal, que glamuriza a canalhagem, endeusa os espertalhões e alimenta a idéia de que crime compensa. O célebre Macaco Tião, se vivo fosse, estaria às gargalhadas, em campanha contra o voto nulo. Confesso que, se for convidada a militar nessa campanha, vou pensar no assunto, eu que sempre defendi a participação e a defesa da cidadania. Quando a gente vê nos jornais, nas rádios, nas tevês, que mesmo depois de tanto empenho, depois de sofridas diretas já, "prendes e arrebentas", PC Farias etc. e tal, nada muda para melhor, dá muita raiva e tristeza.
O que um brasileiro pode fazer, hoje, pelo seu país? Como a gente pode reagir, exigir transparência, transformar a classe política? Desde 1990 recuperamos o voto, mas ele continua servindo a quem não serve. E agora, Brasil, para onde?

Cinéfila, andei fugindo para os cinemas nos últimos dias e contabilizei cinco filmes. Finalmente consegui assistir a "Casa de Areia" e me extasiei. Chorei nas cenas finais como chorei no final de "O amante", há tantos anos atrás. A mesma poesia, a mesma aura de doçura, o sonho guardado entre rendas. "Casa de Areia" é um verdadeiro épico. O Brasil, Fernanda, Fernanda, Seu Jorge, Emiliano Queiroz, Stênio Garcia, Andrucha e toda a equipe merecem.
"Melinda & Melinda" é divertido e encantador, de um jeito que só Woody Allen sabe fazer. O cara é tão genial que conseguiu encontrar um ator perfeito para fazer o papel de Woody Allen num filme de Woody Allen e, mesmo tão diferente, ser absolutamente igual a ele.
"Um filme falado" valeria o ingresso somente pelo privilégio de ver a gloriosa Irene Papas cantar, em seu grego materno, uma bela e pungente canção. Mas tem outros predicados, sutilezas e surpresas (algumas até revoltantes, eu diria), ingredientes reveladores do estilo Manoel de Oliveira de contar histórias.
"A pessoa é para o que nasce" é mais uma história dolorosa e verdadeira do verdadeiro Brasil, cheio de Indaiás, Marocas e Marias como as irmãs cegas retratadas. E seria um filme decente se o diretor Roberto Berliner não tivesse cometido um excesso fatal: expor impiedosamente as irmãs no final. Faltou o respeito básico, a humanidade essencial, o limite. Uma pena, depois de tanto esforço e tantos anos de filmagens. O que fica é a impressão de que, quando seres humanos são criados, tratados e estereotipados como bichos, terão de continuar assim, para justificar os atos de uma sociedade discriminatória e hipócrita.
"Clean", o último, foi um filme que me agradou pelo que tem de verdadeiro e sem maquiagen. Porque fala de gente que tem o direito de errar e recomeçar, brigar e reconciliar-se, consertar malfeitos. De gente como eu e você. A personagem Emily Wang, seu filho e seu sogro (um esplêndido Nick Nolte) vivem sua humanidade ao máximo quando a primeira tenta se livrar das drogas para ter o respeito do filho - e opta por ser honesta com ele, antes de começar errado mais uma vez. E o sogro resolve apoiar, desfraldando uma sabedoria quase inocente sobre o lado efêmero da vida. Vale a visita em todos os sentidos.

Desde 1997 que me envolvo de corpo e alma com a dança. Se antes disso eu já me fascinava com a obra deslumbrante de Maurice Béjart, com George Donn e seu inusitado ar de esfinge, entre outros tantos artistas memoráveis, em 97 aderi definitivamente. Porque sim, por amor, por um amor e pela dança em si, o fato é que me embriaguei de vez. Entre os amigos que venho colecionando nesse ambiente de extrema leveza, Bete Spinelli, bailarina, criadora e diretora de uma excelente academia em Vila Isabel, teima em me convidar para fazer parte do júri de seu concorrido festival "A arte de dançar", este ano em sua décima-segunda edição. E eu adoro, não vou negar, ainda que não entenda direito por que eu, uma simples jornalista, no meio de tantos professores renomados, teóricos e autoridades.
No sábado e no domingo, foram horas e horas de solos livres, variações de repertório, conjuntos, pas-de-deux e propostas dos mais variados estilos. Jovens e crianças competindo, tão pequenos às vezes, por um lugar no firmamento da dança. Há momentos em que fica difícil dar notas e transformar em matemática movimentos tão subjetivos, mas afinal tem de haver um melhor entre os melhores. Ou não?
Às vezes não. O nível deste ano surpreendeu; bailarinos muito melhor preparados, no geral, e idéias mais originais. É claro que não se escapa totalmente do típico "solo-Whitney-Houston-de-mulher-sofredora", repetido à exaustão com trilhas, figurinos e coreografias que parecem diferentes, mas acabam dando no mesmo. Mas isso não é tudo; muitos meninos com futuro na dança clássica, pequenas "Anas Botafogos" em potencial, coreógrafos inteligentes e antenados, uma variedade de temas nacionais bem trabalhados. E até street-dance, quem diria, quebrando paradigmas!
Entregar os prêmios é um prazer à parte: ver os olhinhos brilhantes, os sorrisos, a alegria autêntica da grande maioria (digo isso porque sempre há, no meio, aqueles que literalmente "se acham", como se usa dizer hoje em dia) são recompensa com cara de futuro bom para esse povo brasileiro que se movimenta num palco como ninguém, com seu tempero inimitável de charme, beleza e remelexo.
Estar num festival de dança, apesar das horas de duração, do cansaço e da repetição, é como estar num paraíso particular, colorido pela força da arte em seu momento de nascer.

quinta-feira, junho 09, 2005

Futebol, política, saudade

Ódio e amor em campo

Optei por não ver o jogo entre Brasil e Argentina. Salvei-me, assim, de uma reação exacerbada típica de um paradoxo que só acontece, mesmo, no futebol: o ódio eterno aos vizinhos de la Plata que me acomete sempre que eles entram em campo contra a nossa seleção.

Gosto particularmente de Buenos Aires, tenho grandes amigos argentinos e aprecio imensamente sua educação, cultura, jeito de ser em seu próprio país. Tenho inveja do bater de panelas que sempre ecoa por lá quando o governo sai da linha - e que aqui a gente não vê nem por reza braba. Mas na hora do futebol, não tem jeito: esqueço tudo, até o azul da camisa acho feio. Nem de longe consigo compará-lo ao rio que passou na vida do Paulinho da Viola e do Brasil inteiro, matizado pela Portela. Os odientos portenhos não me enganam nem com sua quase sempre bela figura.

E convenhamos, encarar derrota pros argentinos é duro. Amanhecer com o verde-amarelo pingando no varal, enquanto imaginamos as insuportáveis bandeiras azuis sendo enfunadas por toda parte, é de amargar.

Por isso troquei, conscientíssima, o campo de futebol por um reprise do C.S.I. Pelo menos ali, o crime é ficção.

Más companhias

Quando criança, ficava fula da vida se meus pais sequer insinuassem a possibilidade de alguém me influenciar sobre qualquer assunto. Considerava isso um insulto à minha personalidade e independência. Eu acreditava, então, que tinha cabeça e produzia meus próprios pensamentos, idéias, conclusões. Por isso mesmo, nunca acreditei em más companhias, embora muitas vezes as tivesse. Naquele tempo como agora, gostava e aceitava alguém "porque sim", não por ser bonito, feio, careta ou maluco. E sempre convivi com todos eles, sem que isso afetasse negativamente o meu projeto de vida.

Tarso Genro e Genoíno, em momentos diferentes, disseram nos últimos dias que o problema do PT e do Presidente Lula são as "más companhias". Será que os prestigiosos companheiros de tantas lutas realmente vêem Lula como alguém capaz de sofrer influências desse tipo?

Não. Lula jamais chegaria aonde chegou se não fosse, ele próprio, capaz de mobilizar, influenciar, cativar e convencer. Tenho desprezo por essa pecha de inocente útil que a nossa já tão manchada elite política tenta imputar ao presidente. Tenho respeito por Lula ontem, hoje e sempre - e confio em sua capacidade para gerir a crise atual, uma tremenda oportunidade de restabelecer a confiança da população nas suas instituições democráticas. Se ele cumprir o prometido - cortar na carne, dar a mão à palmatória, abrir a caixa preta do PT - os efeitos se propagarão, beneficamente, por toda nossa economia e pelo sistema político também.

Lula e o governo podem sobreviver às más companhias. Desde que mostrem que não são tão manipuláveis como se quer fazer o povo acreditar.

Tempo de visões

Estou numa época de ter visões: onde quer que eu vá, tem sempre um senhor de idade parecido com meu pai.
E olha que já faz quase um ano que ele morreu!
Tá certo, tá certo, toda pessoa que perde um pai tem lá suas fases. E tenho de admitir que, neste momento, estou na pior delas desde que o inevitável aconteceu.
Meu pai tinha dois cânceres mas, de constituição forte e descendente direto de alemães e italianos, praticamente não sofreu. Não teve as horríveis dores prenunciadas em detalhes por médicos inclementes com a tristeza alheia, por mais que muitos tipos assim se esmerarassem em nos "preparar" com requintes de crueldade. Para ele, as dores eram musculares, e passavam com o mais simples analgésico. Espírita, preparou-se condignamente e desencarnou com delicadeza, sem traumas, suavemente.
Não creio que me anestesiei durante o processo, mas devo dizer que todo o tempo eu parecia envolvida por um grande e macio colchão de conforto. Passei por tudo confiante, apenas triste, como seria normal.
No enterro, um grande amigo pessoal, Carlinhos, falando a meu pedido, comparou a partida deste mundo a uma viagem de veleiro: a gente parte daqui e, do outro lado do horizonte, chega à vida espiritual. Gosto dessa imagem, que combina com as mais firmes convicções que aprendi a cultivar. E estou certa de que, em seu veleiro, meu pai fez muito boa viagem, apesar do vazio que deixou por aqui - e que o tempo, com suas artimanhas, acaba por aprofundar.
Meu pai passou os últimos seis meses de vida em minha casa, num quarto improvisado na sala, com o conforto que pudemos lhe oferecer: comida a tempo e a hora, uma boa cama de hospital que está na família há uns cinqüenta anos e que já serviu a muitas causas nobres, uma televisão que ele mal podia ver porque a catarata não deixava, companhia, os remédios necessários e até alguma mordomia eventual: cervejinha, pimenta e até carne de porco.
E a casa, com suas paredes aparentemente inocentes, ainda guarda o cheiro dele: é a primeira coisa que sinto, todas as noites, ao virar a chave na porta. Mesmo com o tempo e todas as mudanças que fizemos no ambiente.
Estou tranqüila, ainda: o desenlace e o período que o antecedeu não me pareceram injustos com a vida e obra do meu pai, homem culto e de personalidade cativante, mas de gênio forte, qualidades e defeitos como todo mundo.
Mas vejo gente na rua parecida com ele. No ônibus, andando, nas praças, em toda parte. E me lembro de como ele gostava de rodar a cidade e encontrar um ou outro, mesmo que fosse pra reclamar de alguma coisa. Penso também nos livros que a catarata o impediu de ler, no fim da vida.
Meu pai era um espírito livre e influenciou definitivamente a minha formação. Durante anos foi meu confidente, o primeiro na linha da confiança, antes de qualquer melhor amiga. O estreito relacionamento, povoado pelo encantamento que a sua imaginação prodigiosa e o seu talento para desenhar me despertavam, causava ciúmes extremos em minha mãe e, muitas vezes, en minhas irmãs menores. Mas eu não ligava e não sabia resolver politicamente a questão, então ficava assim mesmo. Em meu pai encontrei o companheiro que me apresentou ao cinema, que analisava a história do mundo e desenvolvia o meu intelecto. Talvez por isso eu tenha me tornado, assim, "meio homem" - ou seja, dona do meu nariz, resolvida, capaz de tomar atitudes e procurar meus próprios caminhos pessoais e profissionais, sem jamais aceitar depender de quem quer que fosse, nem mesmo dele.
Com o tempo, essa história se transformou um pouco; os conflitos inevitáveis, na maturidade, acabaram me aproximando mais de minha mãe, personalidade interessante e radicalmente oposta à dele. De todo modo, os laços fundamentais ficaram e sempre marcaram um relacionamento de respeito e carinho.
Hoje, quase um ano depois, sempre que me vejo diante de alguma situação a resolver, procuro me lembrar o que ele me diria a respeito. Procuro me lembrar também das informações preciosas, dos detalhes, das minúcias que o seu grande conhecimento me deixou, e guardá-las preciosamente. Procuro, sobretudo, não sofrer desnecessariamente com a perda, mas aceitá-la como parte da vida e reconhecer que o mais importante, sem dúvida alguma, foi a felicidade de ter convivido com ele por 49 anos. Minha memória emocional, meu amor e meu respeito por ele não são lembranças difusas, mas fatos reais, concretíssimos, de uma vida inteira muito bem vivida. Então, mesmo que hoje me emocione diante de muitos velhinhos que podem ou não ser parecidos com ele (a fase pode enganar, sabe como é), sei que nenhum, jamais, será o que ele foi e é para mim.
E por isso sinto-me agradecida e até mesmo feliz na minha saudade de filha.

segunda-feira, junho 06, 2005

Temos de inventar um jeito novo de ser brasileiros

Com tantas denúncias explícitas e descaradas de roubos, mensalões, pagamento de deputados para votar contra uma CPI (1 milhão e meio pra cada um) - que figuram ao lado da mortalidade infantil de indiozinhos e de um crescente universo de miseráveis e, também (por que não?), da inauguração do shopping da Daslu, exclusivo para a sortuda parcela dos brasileiros aquinhoados com fortunas na casa dos milhões de dólares - ando pensando na matéria de que é feito, de fato, o brasileiro.
Afora a urbanidade de "boa praça", a camaradagem de primeira hora e a alegria de viver que resiste a impressionantes pressões econômicas e ambientais, em que seríamos diferentes de um cidadão argentino, boliviano ou peruano que bate panelas, grita, esbraveja e defende a sua cidadania com unhas e dentes?
Fico a pensar quando vejo aquela série de comerciais que dizem "O melhor do Brasil é o brasileiro." Todo mundo acredita nisso: os publicitários que criaram, os patrocinadores que colocam no ar - menos o "biografado", coitado. Este deve achar que é o pior entre os piores, que não tem valor nenhum, que tá "jogado fora no lixo", como dizia uma canção de nem tanto tempo atrás.
E tem tantas razões para isto! Todo dia vê morte na TV: morte de bandido e de mocinho, truculência policial, vítimas de bala perdida, vítimas de abuso sexual... E também vê imponentes vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores!!!, roubando descaradamente e declarando a legalidade do roubo, metamorfoseada em "brecha na lei". Vê um ministro da Justiça empolado e distante, que não parece enxergar as indecências financeiras divulgadas a olho nu, a todo instante, sobre esse, este ou aquele alto funcionário do governo ou de autarquias.
Se o brasileiro conseguisse mesmo acreditar que ele é o melhor do Brasil, já estaria nas ruas. Batendo panelas, buzinando, bicicletando, exigindo que a legalidade ocupasse os gabinetes, limpasse a sujeira, usasse dinheiro público que sai do salário dos mais pobres (rico não paga imposto, recebe de volta) para dar fim à fome, à violência, para reestruturar o sistema de saúde, para dar escola, diversão e arte às crianças de todos os coloridos, credos e camadas sociais.
O que é que a gente faz, hoje? Dá muita raiva, dá muito desgosto e tristeza. Foi muito difícil elegermos um presidente legítimo, alguém da nossa confiança, alguém com uma história verdadeira, um brasileiro de fato como os outros. Lula seria o nosso grande orgulho. Lula é o exemplo vivo do brasileiro que deu certo sem virar americano. E no entanto, nesse viscoso mar de lama - que, certamente, se arrasta há muito mais tempo que o seu mandato e por meandros muito mais complexos do que se pode imaginar à primeira vista -, está sendo levado.
Me lembro da entrevista do Lula, esse companheiro, ao Globo Repórter, assim que se elegeu presidente. "Eu não posso errar. Todo mundo pode, mas eu não. E eu não vou errar." Acenava o presidente com o peso da responsabilidade não só do cargo, mas do preconceito em razão de sua origem humilde, que até hoje é alimentado por dezenas de piadas de mau gosto.
Mas não. Do Lula que virou o Brasil de cabo a rabo no ABC paulista há que ter sobrado o melhor: aquela fibra, aquela combatividade, aquela transparência. Recuso-me a acreditar que o cerne, a alma verdadeira, tenha acabado, desaparecido nos túneis escuros de um Planalto contaminado. No ano passado vi o Ziraldo dizer, na Festa Literária Internacional de Paraty: "Não posso abandonar o Lula agora. E sabe por que? Porque ainda não acabou."
Ainda não acabou, Presidente. E portanto a gente espera que o Sr. tome uma atitude condizente com a sua história, de respeito aos cidadãos estupefatos diante daquilo que ouvem no Jornal Nacional e que lêem nas páginas das revistas, jornais e blogs Brasil afora.
Mas voltando àquele comercial, venho aqui propor um movimento popular de base mesmo, onde os indignados façam tudo o que estiver ao seu alcance para restabelecer o caminho da legalidade, da dignidade, da cidadania, da justiça e da igualdade para este país. Acho e acredito que "quem muda o Brasil é o brasileiro." Enquanto a sociedade não se convencer disso, e não agir - seja partindo para as soluções caseiras, como parcerias para resolver problemas localizados e aparentemente pequenos, seja atormentando os parlamentares com cartas, telefonemas, faxes, e-mails, seja escrevendo na internet, seja atuando em ONGs, seja batendo panelas - vamos ficar a ver navios, a ver os dólares brilharem nas mãos afiladas dos endinheirados, a ver crianças morrerem de fome ou sem atendimento médico, a ver deputados se elegerem para confiscar o que pertence ao povo.
Se "quem muda o Brasil é o brasileiro", vamos criar fóruns de discussão, vamos organizar os problemas e movimentar este país em busca de soluções. Já é tempo de mudarmos aquilo que podemos mudar, e não ficar esperando eternamente (eu já tenho 49 anos e ouço promessas desde bem antes do golpe militar, fala sério!) que a "recuperação da economia gere empregos, etc. etc., blá-blá-blá".
Vamos desarmar o nosso coração, libertar a nossa inteligência e aplicar a nossa energia de cidadãos conscientes, o nosso senso de urgência, numa grande usina de realizações que nos façam sentir, novamente, orgulho de ser brasileiros.
Que cada um comece pequeno, mas a seu modo, em parceria com outros com o mesmo ideal. Que cada um se dedique à causa pela qual sente a maior simpatia: trabalho, emprego, fome, moradia, educação, arte, meio ambiente, segurança, auto-sustentabilidade... Não faltam opções. Faltam, sim, soluções de verdade.
Se já fomos quilombo, podemos atualizar essa brilhante idéia para o século 21. Sim, porque a exclusão continua mais atual do que nunca, então está na hora de agirmos sem olhar para trás.
Vamos pegar nas armas do desenvolvimento: firmeza, decisão, trabalho, conhecimento, esperança. E recuperar o Brasil que pode ser nosso, parecido com o que a gente sonhou, deseja e quer.

sexta-feira, junho 03, 2005

Jornalismo com graça e estilo, Arigó e mais Watergate

Exemplo de como a criatividade do repórter pode gerar bom jornalismo foi a matéria "Um táxi no Trampolim do Diabo", capa do caderno "Carro etc." do Globo desta semana.
É a história do seu Moacyr de Sá Porto, taxista de 66 anos, entusiasmado dono de uma coleção invejável de revista sobre automobilismo das décadas de 30, 40 e 50.
Trampolim do Diabo, explica o repórter Jason Vogel num excelente e pitoresco texto, era o apelido do Grande Prêmio do Rio de Janeiro, que foi disputado de 1933 a 1954 no Circuito da Gávea. Lá desfilaram ases do volante como o português Vasco Sameiro, Henrique Casini e o legendário Chico Landi, primeiro piloto brasileiro a brilhar na Europa.
Seu Moacyr deve ser, de fato, uma carioquíssima figura, no melhor dos sentidos. Pilota seu táxi pela Zona Sul das cinco da tarde às seis da matina (seu ponto é no Bar Lagoa), enquanto na sua casa, em Bangu, repousa um verdadeiro tesouro de recordações, em páginas e páginas de revistas e jornais. Costumava freqüentar sebos à cata de raridades sobre o automobilismo, esse tema que o apaixona desde que se entende por gente, mas agora diz que não tem mais tempo.
No dia a dia, Moacyr se empolga quando encontra um interlocutor à altura: não hesita em mostrar alguns de seus recortes e relatar fatos surpreendentes - que, para nosso deleite, foram parar numa bela matéria de capa, daquelas que pouca gente sabe fazer. Histórias que tornam mais vivo o nosso cotidiano, com tempero de um texto de qualidade que deixa transparecer o talento de um bom contador de histórias.

Arigó

Arigó, no dicionário da língua portuguesa, é uma ave de arribação. É também sinônimo de caipira. Na cidade de Volta Redonda, arigó é também o nome com que foram batizados os primeiros operários que vieram construir a Usina da CSN. O nome, meio carinhoso, mas com um quê de pejorativo na época, acabou pegando de vez, a exemplo do "candango" de Brasília.
No dicionário de Fatita Bustamante-Celes, presidente da ONG FANCINE e cinéfila de carteirinha, "Arigó" é sinônimo de muitas outras coisas: talento, criatividade, empenho, paixão, gente, trabalho... "Arigó" é um curta-metragem de animação de sete minutos de duração, realizado com o apoio do Fundo Nacional de Cultura, e que conta, sob um "olhar de pássaro", a história de Volta Redonda. Todo o trabalho foi feito por alunos da rede estadual de ensino da cidade, selecionados por seu talento para o desenho e assistidos por uma poderosa equipe de artistas.
O resultado tem voado amplamente nos céus das salas de exibição por este Brasil afora; "Arigó" já foi aplaudido em festivais importantes como o de Recife e tem convites suficientes para comprimir a agenda de seus criadores, que até aula prática na UFRJ já foram ministrar.
Mas aqui, na terra mesmo, pouca ou nenhuma gente sabe, pouca gente viu. Ninguém tem idéia da dimensão do projeto, a semente viva do sonho de criar uma escola de animação para manter os talentos respirando arte e conhecimento. A velha síndrome de dar pouco valor ao que vem de dentro corrói as entranhas das comunidades e transforma-as em meras importadoras de produtos e talentos, quando poderiam, com toda certeza, ser exportadoras. Um povo que não se orgulha de si mesmo não pode se orgulhar de nada. Não que seja lá muito produtivo mirar sempre o próprio umbigo, mas sim crescer e aprofundar-se naquilo que se tem de melhor. Artistas que aprendem com artistas e ensinam novos artistas, para formar e manter estruturas culturais, crescer com elas e solidificar a estrutura para que ela se perpetue.
Quem nunca viu "Arigó" não sabe o que está perdendo. Uma cidade que tem "Arigó", Fatita e seus cineastas e não os valoriza, certamente não sabe sequer onde está no mapa.

O ofício do repórter

Bob Woodward, com sinceridade e talento, fala de sua história e do relacionamento com W. Mark Felt, o até agora ultra-secreto Garganta Profunda.
Gostei do Bob que conheci nesse texto, publicado hoje em O Globo. O artigo revela, com inusitada transparência, os medos e vertigens de alguém indeciso sobre que caminho a seguir, no início da vida. Bob fala comigo, fala de canto de boca, fala no ouvido, fala olhos nos olhos. Traz confiança e personalidade própria a uma história de jornal, que muitos lerão, mas a cada um, ainda assim, parecerá única.
O relato do repórter deixa a alma à mostra. Não denota vaidade, só perseverança na busca do melhor resultado, da notícia reta, honesta e relevante. Um espírito que, às vezes, chegamos a duvidar que sobreviva no jornalismo de hoje: o investigativo clássico, que não visa a resultados pessoais, mas serve ao coletivo.
Ao ler Bob Woodward, hoje, fiquei feliz por não ter sido o "Post" a publicar a identidade do Garganta. O grande jornal e seus sensacionais repórteres foram preservados do caráter menor, mesquinho, da venda de um furo. Aos olhos do mundo, o trio Bob Woodward, Carl Bernstein e Ben Bradlee, assim como a mítica Katharine Graham, dona do jornal que bancou a história nos idos de 1974, continuarão a ser sinônimo do mais genuíno jornalismo, cujo único objetivo é, de fato, a verdade.

quarta-feira, junho 01, 2005

Afinal, vem à tona o Garganta Profunda

Quem se lembra do dia-a-dia do caso Watergate - parece que foi outro dia mesmo! - e acompanhou com ansiedade o desenrolar do caso que levou um presidente norte-americano às portas do impeachment adorou conhecer o rosto daquela que foi, seguramente, a mais secreta fonte da história do jornalismo.

W. Mark Felt, hoje aposentado, era o segundo homem do FBI no governo Richard Nixon. Foi ele quem municiou os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, do jornal The Washington Post, com as informações que acabaram por comprovar o envolvimento do Comitê para a Reeleição do Presidente com espionagem e fraudes que obrigaram Nixon a apresentar sua renúncia, antes que fosse atingido pelo impeachment. E a revelação foi feita por ele mesmo, aos 91 anos, à revista Vanity Fair.

Woodward e Bernstein confirmaram. Ben Bradlee, ex-editor do Post, revelou-se espantado por ter o segredo durado tanto tempo. A história entrou para os anais do jornalismo, virou um excelente livro e um ótimo filme, estrelado por Dustin Hoffmann e Robert Redford. Trouxe lições, instituiu boas práticas, deu um lustro de respeito ao jornalismo investigativo de qualidade.

Conheci Deep Throat esta manhã, ao abrir o jornal; um sorridente senhor de 91 anos acena para os repórteres na matéria de capa, com a filha sorrindo ao fundo. Aliás, as declarações desta sugerem claramente um benefício financeiro resultante da declaração do pai, suficiente até para "pagar os gastos com a educação" dos filhos dela. É a única nota a lamentar de um fato tão marcante por seu lado politicamente correto, de defesa da democracia, combate à impunidade e coragem de demonstrar que a Casa Branca não é, afinal, nenhum Olimpo - e nem o era nos idos de 1974, quando financiava os golpes de direita no nosso combalido Terceiro Mundo. E Bill Clinton era apenas um inflamado jovem em campanha contra a guerra do Vietnã.

Maria, cheia de graça

Choque. Profundo, de remexer na poltrona com um desconforto monumental. De sentir frio, tremer, sentir a ponta do estômago revirar - foi só um pouco do que senti ao assistir à cena em que a jovem Maria, 17 anos, personagem do filme que dá título a esta crônica, engolir 70 papelotes de cocaína para, no papel de mula, empreender sua primeira viagem de "entrega" a Nova York.
O que começa com características de um típico filme latino - sem maquiagem, som e luz longe de serem perfeitos, ambientes reais - toma, de repente, um fôlego enorme ao reproduzir sem cortes os dramas do submundo das drogas e os dramas individuais de pessoas sem perspectiva.
Maria passa dos espinhos das flores aos espinhos da vida de mula com um desassombro que até espanta, pela pouca idade que tem. Preparadora de flores numa espécie de Barbacena colombiana, tem os dedos sempre cobertos com plástico, mas mesmo assim furados de espinhos. Mora no subúrbio com a mãe, a avó, a irmã e um sobrinho ainda bebê. Como se não bastasse, ainda engravida do namorado Juan, a quem não ama.
Daí para o contato com o atravessador, através de Franklin, um rapaz que conhece num baile local, é um pulo.
O engolir das drogas é um capítulo à parte. Uma coisa é você saber que existe, ler num jornal, ouvir falar; outra muito diferente é assistir à laboriosa, detalhada operação em seus mínimos detalhes. Parece que é a garganta da gente que dói, que a destituída jovem que luta para manter uma atitude corajosa poderia ser alguém da família.
O filme é fundamental porque tem transparência de verdade, todo ele é possível de fato. A Colômbia, afinal, é ali na esquina mesmo. E mulas não as há somente lá, para nossa tristeza, pois somos parte da rota. Uma menina como Maria pode, neste exato momento, estar passando pelo mesmo pesadelo em qualquer grande cidade brasileira.
Pesada como é, com seus 500 quilos de dor e mais de 500 anos de culpa e sofrimento, a realidade do Terceiro Mundo precisa ser enfrentada. E urgentemente, enquanto ainda há remédio. Mais uma vez, a arte imita a vida com uma perfeição que machuca, que corrói, que aponta a ferida.
Mais do que nunca, é tempo de acordar.