quarta-feira, setembro 14, 2005

Uma história de gente

Vou falar de alguém que conheço pouco, pouco ou quase nada além das crônicas de jornal, algumas paixões declaradas - como árvores centenárias, tecnologia, capivaras, frangos d'água - e referências muito carinhosas do Drummond, grande amigo de seu pai, que a viu crescer.

Vou falar de Cora Rónai, com especial emoção após ter visitado seu blog e visto a série de fotos de viagem que vem publicando, com comentários às vezes telegráficos mas sempre poéticos, marcados pelo bom-humor e lembranças.

Em Budapeste, Cora visitou o prédio onde seu pai viveu toda a infância e onde seu avô tinha uma livraria. E tocou de passagem, como o leve farfalhar de uma pena, em dores guardadas na memória atávica de sua família, no horror da Segunda Guerra. Não posso estar na sua pele para imaginar o que ela sentiu ao percorrer o hall de entrada e as belas escadarias e imaginar, como ela mesma diz, como deve ter sido difícil abandonar aquilo tudo de repente e mergulhar no desconhecido. Sem falar nas perdas, é claro, pois seu pai nunca mais tornou a ver os avós, o próprio pai e mais dois irmãos.

Fiquei pensando nessas tristezas, às quais ando particularmente sensível ultimamente. A viagem no tempo de Cora me vez recordar a recente leitura de Ver:Amor, romance de David Grossman publicado no Brasil em 1993, que encontrei entre os saldos da Livraria da Travessa e cujo tema é o holocausto, mas a partir da visão de alguém que não o viveu - e tenta o tempo todo captar, nas pessoas que passaram por aquilo, o sentimento da tragédia.

É uma homenagem desesperada, profunda imersão na reconstrução da alma de quem precisa, acima de tudo, conviver com as marcas e mesmo assim não se tornar vítima, transcender, transformar a vida. E está cheio de histórias belas, fortes, comuns e trágicas como a da família Rónai. O texto, de uma doçura enorme, faz uma ponte para que se possa compartilhar sentimentos com aqueles personagens que, de tão reais, poderiam até morar dentro da gente. Uma onda de solidariedade, sei lá, compaixão, igualdade ou seja lá o que for, me acometeu desde então. Ao contemplar aquelas escadas atravessadas pelo tempo, não pude deixar de imaginar os seis filhos do casal de livreiros (os avós de Cora) correndo pra cima e pra baixo entre o mundo dos livros, o mundo da casa e a rua, com seus sonhos, esperanças e a vida pela frente, sem pressentir o perigo ou adivinhar as sentenças que viriam.

Diante dessas e de outras tragédias, como as tantas que se avolumam no momento presente em todo o mundo, me vem à tona com força um alerta interior para o compromisso que sempre precisamos ter com o futuro da humanidade. É preciso lembrar e relembrar, em atos e convicções, o quão desesperadamente todos nós, humanos, precisamos de paz.

Paz para salvar a gente comum das nossas favelas e das ruas, da faixa de Gaza, de Bagdá e de cada Brasil dentro desse nosso país. Paz para salvar a humanidade dela mesma. Paz como resistência, como uniforme do nosso coração.

Gostaria que houvesse escadarias, como a da família Rónai, por onde pudéssemos subir, cada dia um degrau, e chegar à paz palpável, simples e comum, que a gente tanto precisa.

Um comentário:

Anônimo disse...
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