terça-feira, setembro 06, 2005

Cada vez mais perto do perigo de viver

(da série "Tratado das letras de Parati")

Hoje, arrumando gavetas seculares, encontrei uma página meio amassada, talvez caída de sei lá que livro, com uma foto de Clarice Lispector - aristocrática, enigmática e forte, sempre forte como presença.

É inevitável: sempre que penso em Clarice, lembro do conto "Amor" - e da bolsa com os ovos, tão protegidos e de repente quebrados, coitados, espalhando seu amarelo pela tela da bolsa, esvaindo-se pela saia da personagem, por sua alma e pela calçada.

Um dos primeiros, dentre tantos outros, momentos de Clarice que me marcaram a ferro - e ovo - para a vida, o conto "Amor" fala do instante inexorável do acordar interno, de alguém que de repente se situa no mundo, abandona a casca da conveniência e encara a dor de dentro, o vazio e o precipício, o arriscado no ato de viver.

Na FLIP, que este ano homenageou a escritora, os encontros com Clarice foram marcados pela vertigem que ela sempre provocou - tanto com sua personalidade como com seu texto único. No espetáculo de abertura, falaram os poemas, os contos, os amigos e até os personagens, na pele dos atores que interpretaram uma espécie de versão de concerto de "A hora da estrela". Na mesa 3, "No raiar de Clarice", a escolha foi retratá-la do ponto de vista de amigos e estudiosos de sua obra, de um modo muito acolhedor, que aproximou o mito da platéia.

Marina Colasanti narrou como se fosse um romance a convivência de longos anos com a amiga, desde a descoberta, junto com o irmão Arduíno, do primeiro conto publicado na revista "Senhor" até os últimos anos em que, debilitada, era cercada pela atenção e o cuidado de todos os que a amavam.

Lembro-me de Clarice na antiga TV Tupi, na década de 60, com sua desenvoltura e aguda inteligência, gesticulando e fumando. Tinha uma presença impactante para mim, menina ainda e muito longe de seus livros. Só mais tarde, ao descobri-la em todo seu esplendor e intensidade literários, é que eu teria meios de fazer a conexão entre a enérgica debatedora e a mulher que deu voz ao sentimento mais exacerbado, mais fundo e quase insuportável.

Marina Colasanti diz que, diante de Clarice, havia toda uma reverência, um sentimento de adoração; ninguém abria a boca. Era como se em Clarice alguma coisa pudesse acontecer a qualquer momento. - Ela nunca coube em qualquer realidade, nem mesmo na sua - frisa Marina. - E todo o seu esforço, como escritora, está em buscar o seu outro eu.

"Quero apossar-me do 'é' da coisa." A frase, de Água Viva, me paralisou por meses. Tive medo, constrangimento, desentendimento, aflição - mudei de livro, de autor, de temática, fui e voltei, mas continuava atormentada. Agora, quando ouço de Marina Colasanti uma frase de Clarice - "Eu sou mais forte do que eu" - entendo melhor. Começo a me aproximar, chego quase à beirada e posso me arriscar a compreender.

"Às vezes acordo de madrugada e julgo ouvir o bater das teclas da máquina de escrever de minha mãe. Acostumei-me desde pequeno àquele ruído, às madrugadas que ela varava escrevendo." O depoimento emocionado do filho de Clarice Lispector cabe como uma luva no mosaico de impressões deixadas por essa mulher múltipla, praticamente dona de todas as palavras certas.

Há quem diga que ler Clarice é perigoso; o seu "território" é tão específico que muitos ficaram impotentes ao tentar seguir sua literatura. Clarice trilhou um caminho intensamente "de alma" - e suas obras são como tentativas verbais de alcançar um ponto que sempre lhe escapava, nas palavras de Benedito Nunes.

Mas o que acontece com quem lê a torrente de paixões que se arremessa da prosa de Clarice e sente que não pode fazer nada senão entregar-se, segui-la, intensificá-la acima de tudo? Nesse sentido, não há perigo no encontro. Antes, plenitude e um imenso desafio: sentir Clarice, verter Clarice para suas próprias palavras, intenções e gestos.

Lembro-me agora, de "A mulher que matou os peixes". Clarice cultivou muito o universo infantil, talvez por causa de seu filho, talvez porque amasse as crianças ou tivesse, ela mesma, algo de lúdico e simples em meio ao terremoto interno da mulher crescida. É um livro que qualquer criança entende, sente - e no qual viaja, hipnotizada, com bilhete sem volta.

Para Vilma Arêas, autora de "Clarice na ponta dos dedos", Clarice é intuitiva. Na verdade, ela era um mundo à parte, com tudo do melhor e do pior que o mundo de verdade tem. O incrível e fantástico é que, com essa multiplicidade e por caminhos tortuosos, Clarice entrava sem dificuldade no coração das pessoas e passeava pela alma com uma desenvoltura que podia assustar.

No mundo prático, Clarice não tinha lugar. Não se sentia à-vontade com as lides comezinhas do dia a dia. Ter de escrever para ganhar a vida - crônicas e até mesmo livros - era algo que a angustiava. Mal interpretada às vezes e injustamente taxada de reacionária ou alienada, Clarice tinha seu próprio jeito de interpretar a realidade brasileira. Assim, a pobreza e a exclusão foram temas de "A hora da estrela", enquanto, em sua última crônica, escreveu sobre o bandido conhecido como Mineirinho, assassinado com dez tiros. Envolvia-se, preocupava-se, mas não sabia viver direito num mundo sedento de palavras de ordem. Política, sim, partidária jamais.

Clarice falou como ninguém ao meu coração feminino em "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres", uma de suas obras ditas "menores" (Aliás, dessa questão de menores ou maiores, prefiro passar ao largo; existe apenas Clarice, que nasceu na Ucrânia mas criou sua alma aqui, no idioma das nossas contradições). "Uma aprendizagem" é todo intensidade, fervor - e nudez, também, um despir-se de tudo o que é mero, fugaz e incapaz de "ser" completamente.

Na FLIP, Clarice esteve perto, viva, menos mito que poesia. Marina Colasanti contou sobre um jantar que a própria Clarice pediu para ela fazer, num recado transmitido por Nélida Piñon. Ela queria ver os amigos. Marina fez, Clarice chegou "imperial", na definição dela - e logo depois desesperou-se numa dor de cabeça e pediu para ir embora. De nada adiantaram argumentos ou aspirinas. Precisava muito ir. "Tudo é terra dos outros onde os outros estão contentes" - sentenciou. Tudo o que Marina pôde fazer, diante disso, foi pedir ao marido, o poeta Affonso Romano de Santanna, que a levasse.

- Tenho certeza de que ela ficaria muito feliz em saber que, hoje, essa 'terra' é toda dela - concluiu amorosamente Marina.

Em respeitoso silêncio, todos nós concordamos e aplaudimos com o nosso coração selvagem totalmente dominado pela lembrança e pelo mistério de Clarice.

Nenhum comentário: