sábado, setembro 24, 2005

Impunidade sempre em alta

Já não basta a constante vergonha que nos assalta todos os dias, ao abrir os jornais e acompanhar todos os absurdos vai-não-vai e toma-lá-dá-cá da crise política, sem nada - ou quase nada, à exceção da recente malufada enjaulada - de conclusivo acontecer na prática.

Alguém viu alguém devolver dinheiro aos cofres públicos deste país? Viu? Onde??? (Sem dúvida estou tendo hoje o meu dia de Graúna).

Pois agora isso é pouco. Ainda temos de assistir a vergonhas muito maiores. A primeira página do Globo de hoje - coluna mínima, mas vá lá, é primeira página - informa que o Supremo Tribunal Federal, por meio de habeas-corpus, acaba de colocar em liberdade um assassino condenado a 228 anos de prisão: o coronel Mário Pantoja, responsável pelo massacre de 19 pessoas, entre agricultores e familiares, em Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996. É, e com direito a despacho veemente do ministro Cézar Peluso, que concedeu ao réu o privilégio de "recorrer em liberdade".

Uma de minhas grandes frustrações com Fernando Henrique Cardoso, intelectual e teórico, ídolo das médias-esquerdas da minha geração, sempre foi a sua incapacidade de agir com firmeza e responder com energia às grandes crises nacionais, durante o seu governo. Uma delas, para mim a mais emblemática, foi o massacre dos sem-terra em Eldorado dos Carajás. Enquanto todo o país assistia, atônito, às barbaridades cometidas pelos policiais comandados pelo dito coronel Mário Pantoja, o presidente balbuciava desculpas em cadeia nacional. Nem sequer o governador do Pará foi afastado, que dirá o alto comando da barbárie.

Na página 13, a matéria - que engordou para duas colunas, ainda que imprensada entre manchetes sobre o referendo do desarmamento e o resultado da dupla sena - cita trechos do despacho do ministro. "A garantia constitucional não tolera execução de sentença condenatória, em qualquer de suas eficácias, antes do trânsito em julgado (ou seja, quando se esgotam todas as possibilidade de recurso." Tal rigor com os direitos de um cidadão, ainda mais um assassino condenado, não só me espanta como me faz lembrar o caso da jovem mulher que foi presa em São Paulo por tentar - notem bem, tentar - roubar um shampoo e um condicionador em uma farmácia e, mesmo sem ser julgada, passou um ano e sete meses na cadeia e perdeu até uma vista em função de torturas. E só saiu por causa da determinação de uma advogada diante do absurdo da situação, que batalhou até conseguir que um promotor de justiça se compadecesse da pobre. Mas o ministro Cézar Peluso, cujo salário é pago com o dinheiro do contribuinte brasileiro, vai mais além em seu despacho: "Não há maneira de o sistema jurídico reparar a privação da liberdade sequer mediante o expediente sub-rogatório de indenização (que, aliás, não se sabe quando é paga)."

Ou seja: um assassino, responsável pela morte de 19 pessoas inocentes, inclusive crianças, tem o direito de recorrer da sentença em liberdade e merece ser "reparado" pelo tempo que passou na prisão até agora. É isso mesmo ou será que eu entendi mal?

Quem indenizará a jovem que perdeu a visão de um olho e mais um ano e sete meses de sua vida na prisão, sem julgamento, por tentar roubar produtos de beleza numa farmácia?

Que indenização, por maior que seja, poderá amenizar a dor dos que perderam seus parentes no massacre de Eldorado dos Carajás?

Que indenização poderá restituir à alma brasileira a confiança na Justiça, se o maior órgão do nosso judiciário, o Supremo Tribunal Federal, age com tamanha condescendência para com assassinos condenados?

Não podemos esquecer, não devemos esquecer o que vimos - eu e todo o Brasil - acontecer em Eldorado dos Carajás. Nossa Justiça deveria defender e proteger a população, independentemente de cor, raça ou classe social. É isso o que diz a nossa Constituição, que todos juramos honrar. E é isso o que o ministro Cézar Peluso acaba de ignorar, quando concede habeas-corpus a um assassino condenado.

É o mesmo que rir na cara de todas as vidas humanas perdidas no massacre, rir na cara da dor dos parentes, rir na cara de todos os brasileiros que desejam banir, de uma vez por todas, a impunidade crônica que inibe o crescimento da nossa dignidade e cidadania.

Quando o Judiciário chega a este ponto, ao mesmo tempo em que o Executivo e o Legislativo se envolvem num dos maiores imbroglios da nossa história recente, dá muita vontade de sair gritando por aí. Como é que nós, a sociedade atônita, vamos dar conta de restituir ao nosso país o direito de existir, funcionar, legislar, educar, sonhar?

Nenhum comentário: