domingo, setembro 11, 2005

Jóia rara e, agora, vazia

Há duas décadas, Caetano acreditava que, se o deixassem cantar, o mundo ficaria "odara", tudo seria "jóia rara". Nesse interlúdio entre tempos mais românticos e cultura - como pão espiritual de cada dia - mais disponível, natural e profusa, nove cinemas naufragaram em Copacabana, nas águas do irracionalismo ditado por produtos de consumo com pretensões de equivaler à sala escura e, muito provavelmente, da violência que nos rouba, dia a dia, o direito de curtir apaixonadamente a nossa cidade.

O Jóia - peça de resistência encastelada no antigo shopping da Av. Copacabana 680 - acaba de fechar. Aliás, fechou na última quinta-feira, como atesta o Globo de hoje. Cineminha maldito, pequeno, escondido, muitas vezes quente, com eventuais problemas técnicos e alvo de reclamações freqüentes, sem dúvida. Mas foi lá que fui apresentada, em êxtase, à Flauta Mágica de Ingmar Bergman. Foi lá que vi o notável brasileiro Os Mucker, hoje um tanto esquecido. E foi também lá que, mais recentemente, derramei-me diante do dolorido Dançando no Escuro, de Lars von Trier.

Sim, o Jóia era raro, especial. Endereço velho conhecido dos ratos de cinema, todo mundo sabia que podia assistir lá aos filmes cult em fim de carreira, na repescagem. Raramente tinha fila e era um dos preferidos dos idosos das adjacências, por ser perto de tudo, de fácil acesso e com escada rolante. Jóia rara que fez história na vida da cidade e do bairro.

A nota do jornal não me deixa esquecer que o Roxy, hoje, é o único cinema de Copacabana. Parei para pensar e contar os mortos: Cinema 1, paraíso no qual navegamos, eu e minha geração, pelo melhor do cinema europeu de autor; o Ricamar, que pelo menos virou a Sala Baden Powell e se manteve como espaço de cultura; o Metro Copacabana, que ficava pertinho da C & A, na Nossa Senhora do Mesmo Nome; o Art Copacabana, em frente à Dias da Rocha, transformado em triste academia de ginástica para os modernos de plantão, o que me fez odiar para todo o sempre a marca BODY TECH, que perpetrou o crime; o Rian, majestoso em sua bela arquitetura na Avenida Atlântica, ao qual eu chegava fácil, fácil, de 119 - ônibus que eu pegava na São Clemente, cruzava o Túnel Velho e saía na Santa Clara, depois pegava a Constante Ramos e ia até a praia; o Cinema 3, na Raul Pompéia; e o Caruso, inesquecível em suas poltronas de couro vermelho, aclamadas como as mais confortáveis da cidade.

Tinha ainda o Bruni Copacabana, aquele cineminha um tanto acanhado, com ar de abandono, no fundo de uma galeria na Barata Ribeiro, quase Santa Clara, e que foi engolido pela recente expansão da Modern Sound, a melhor loja de CDs e DVDs da cidade. Lembro que ali assisti "A estranha família de Antonia", o filme que derrotou o belo Quatrilho, o primeiro filme brasileiro finalista do Oscar de melhor filme estrangeiro.

(A Modern Sound só está perdoada pela invasão por ter criado, em seus excelentes domínios, um charmoso misto de bar, espaço cultural e palco para a música que ainda resiste na cidade. Um sucesso que merece o nosso respeito.)

Nove salas é uma perda grande. E fica ainda maior se contabilizarmos, bairro a bairro, a derrocada das salas de cinema nas zonas sul e norte do Rio. Entrar no saudosismo barato não ajuda, é claro, mas é preciso pensar no destino da cultura. O slogan de uma conhecida e hoje bem reduzida rede carioca - Cinema ainda é a melhor diversão - ainda fala ao coração de muita gente capaz de gerenciar projetos de sucesso, como o Estação Botafogo, o Espaço Unibanco e o Arteplex, onde o cinema enquanto arte é a filosofia principal, temperada com a competência necessária para manter o equilíbrio financeiro. Isso sem falar nos Cinemark da vida, que asseguram o presente e o futuro do circuitão.

Estamos vivendo a era das lojas de R$ 1,99, das farmácias e dos varejões de roupa pronta. Ah, e como esquecer, também das locadoras e dos home-theaters - sem o cheiro da pipoca da carrocinha se misturando ao sereno da tarde, sem a doce ansiedade do primeiro ruído (rugido?) que silencia a tagarelice da espera e nos faz prender a respiração, à espera do novo? Cinema é cultura de primeira hora, de primeira linha, que transfigura a nossa imaginação e nos dá o poder do movimento, sem muita distinção de berço ou classe social.

O que fazer com uma Copacabana quase deserta de cinemas, que sofre sucessivos baques em sua tradição boêmia, efervescente? As forças culturais dessa cidade bem que poderiam se unir em oferenda aos deuses do cinema e, contra a maré demolidora, buscar um projeto que, equilibrando o cinema-entretenimento e o cinema-cultura, possa contra-atacar essa tristeza de cenário e fazer procriar a tela grande nos corações das atuais e futuras gerações de cinéfilos, formados ou em formação.

Esse novo complexo - já estou eu sonhando! - poderia, inclusive, batizar suas modernas salas com os nomes dos finados Rian, Caruso, Art, Jóia..., o que equivaleria a ressuscitá-los e devolvê-los à terra de onde, afinal, nunca deveriam ter saído.

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