segunda-feira, junho 25, 2007

Um só sangue, três brasileiros


Sou chorona, é fato sabido. Mas há tempos não chorava como devia, como eu mesma me devia. Sem afogar os anos e o coração de estudante que deixei pousado na década de 80, bem à beira do poço das esperanças de um país melhor.
Há tempos não chorava como ao ver "Três irmãos de sangue", o poema amoroso em forma de documentário sobre Henfil, Betinho e Chico Mário. Dirigido por Angela Patrícia Reiniger, uma jovem que, de tão jovem, decerto não viveu as vidas e histórias que tão bem soube contar.
Angela soube descortinar a vida brasileira e suas lutas, dores e pequenas vitórias, através da história dos três irmãos que deram tudo ao seu país, cada um na sua frente de batalha, sem entrega, sem trégua.
Foi como se o filme da nossa vida passasse na nossa frente... Só que não era sonho ou experiência de quase-morte, era um filme mesmo, a nossa vida ali rasgada, aberta, descosturada, sofrida - exposta sem qualquer anestesia, mas com beleza, compaixão, perspectiva histórica.
Penetrar na intimidade da família de oito irmãos e todos os homens hemofílicos, ver as irmãs lá, tão corajosas, contando as histórias de cada menino, dos pais, da vida deles, foi como tomar café na cozinha da casa. E sacudir a cabeça como quem entende, como quem viveu tudo aquilo como os três fossem um pouco da gente.
E são. Passei anos nas asas da Graúna e nos braços do Bode Orelana, do Severino e do Fradim. Lê-los era o ritual sagrado que exorcizava um pouco os fantasmas que nos perseguiam naqueles tempos. Em 1986, quando fui selecionada para o primeiro Curso de Jornalismo que a Rede Globo promoveu, o Henfil foi um dos palestrantes. Nesse primeiro contato enxerguei um brasileiro antenado com seu tempo, comprometido com os ideais de justiça e liberdade. O filme falou abertamente do seu desencanto com o aborto das diretas e a eleição de Tancredo Neves, e disso me lembrei bem: em sua fala no curso, ele considerava Tancredo um traidor dos ideais democráticos e da pátria brasileira, que manipulara o processo desencadeado pela campanha Diretas Já! em benefício próprio.
Os detalhes da vida do Henfil, contados pelas ex-mulheres, a viúva, as irmãs e amigos com uma serenidade incrível, tocaram fundo. Assim como o depoimento da mulher de Chico Mário e do filho. E também da ex-mulher e da viúva de Betinho, e dos filhos Daniel e Henrique. Por falar em filhos, Angela Patrícia construiu uma linda cena com imagens antigas do filho do Chico, ainda pequeno, e sua voz gravada sobreposta a outras imagens, mais tristes, do então adolescente no enterro do pai. Pouco antes há um depoimento do menino, muito forte, determinado e cheio de esperanças, na época da descoberta da doença do Chico Mário. O contraponto lembrou as cenas finais do filme Filadélfia, que desfilam imagens enevoadas do protagonista ainda menino, andando de velocípede despreocupado... Isso é cinema, é saber apropriar-se com respeito de detalhes que enriquecem, comovem e ficam pra sempre na nossa memória afetiva.
Tudo... as cartas da mãe, a emoção do Ivan Lins ao falar do Chico Mário, a presença forte do Ziraldo, do Aldir Blanc, do João Bosco e de tantos amigos, famosos ou não, que trouxeram para o filme uma verdadeira profissão de fé na nossa história, um orgulho de terem compartilhado a vida e a militância com três brasileiros tão profundamente éticos, talentosos e humanos.
Rever a chegada dos exilados ao som do hino "O Bêbado e a Equilibrista" foi voltar no tempo e, por um fugaz momento, acreditar de novo que ia dar certo, ia sim dar certo, teríamos um futuro após 21 anos de opressão, sem saber que, outros 20 e tantos anos depois, ainda estaríamos à procura desse futuro em meio à banalização dos valores, reféns do tráfico e da corrupção e sem coragem mesmo de empunhar novas bandeiras, com a casa inteira por arrumar e sem saber por onde recomeçar.
Vi Betinho uma só vez. Ia de carro do Rio para Barra Mansa e paramos no Bob's do Belvedere Viúva Graça, como era costume. E aí vi Betinho em sua simplicidade, parado na calçada a poucos passos de mim, o filho menor por perto. Lembro que pensei comigo: puxa, é a primeira vez que me vejo diante de um herói de verdade. Um herói do nosso povo, em carne e osso e com seus olhos fundos de verdade e jeito de mar. Jeito de gente. E não tive gesto nem jeito de me aproximar. Um herói é um herói... resolvi guardar-lhe a imagem do lado esquerdo do peito. E só.
Não me contive. Ao final da sessão, estendi os braços para Angela Patrícia, essa menina de valor, talento e consciência. Foi um abraço feito de saudades do que vivemos e que ela, mesmo não vivendo, nos devolveu da melhor maneira.
"Três irmãos de sangue" tinha de ser exibido em todas as escolas do país, para que cada criança soubesse que ainda há coisas em que vale a pena acreditar, e pelas quais vale a pena lutar.

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