sexta-feira, junho 22, 2007

Transfor-Tango


Gotan quer dizer "tango". A inversão silábica parece ser uma moda recente na Argentina. E se repetirmos sem parar - go-tan-go-tan-go-tan-go-tan - acaba sendo mesmo tango. Pelo menos é a isto que o Gotan Project, grupo que mistura elementos tradicionais e eletrônicos, projeções mirabolantes e um jogo de cena muito bem estruturado - se propõe: divulgar o tango argentino, sob o comando de um D.J. com sotaque francês.
Num Canecão lotado como eu não via desde a década de 80 pelo menos, o grupo desfilou seus apoteóticos números musicais com muito ritmo e vivacidade. Um cello, três violinos, piano, violão, voz, bandoneón (claro, não podia faltar), além de um D.J. e um programador/tecladista por trás de uma plataforma alta. Projeções enormes ao fundo, por cima dos músicos, pra todo lado: rostos duplicados, casal dançarino duplicado, paisagens, situações... um mosaico em alta velocidade que por vezes chegava a dar tonteiras.
Senti calafrios. E sono, muito sono, após os dois primeiros números. Aquela insuportável batida eletrônica, bat-bum, bat-bum, a rodear cada acorde, cada instante em que o tango parecia real, o jogo de luzes e configurações calculado com precisão absoluta, com o dom de iludir. E as pessoas, extasiadas.
Lembro-me de ter ouvido Piazolla dizer, num dos espetáculos que tive o privilégio de assistir: - Este é o novo tango, que revolucionou a nossa música. E pelo qual muita gente me critica, mas que é a coisa mais moderna que existe hoje no gênero.
Piazolla mudou o tango, sim, mas mudou com gênio, intensidade, poesia. E não deixou pedra sobre pedra, e no entanto a essência permaneceu e firmou-se definitivamente como o retrato mais fiel da alma argentina.
Enquanto ouvia entre bocejos o Gotan Project, pensava que, para mudar o tango, precisa ser um Piazolla.
Os bons músicos que compõem o grupo estão muito longe disso. À exceção do pianista, este sim um virtuoso quase que completamente obscurecido pela parafernália eletrônica, os outros faziam bem o seu trabalho, mas não despertavam nada de extraordinário, nenhum rasgo no coração sequer parecido com o estrago que faz um único acorde de "Adiós Noniño"...
O Gotan Project é um projeto comercial bem-sucedido, a julgar pela quantidade de gente que apinhava o Canecão e por sua recente turnê européia, orgulhosamente anunciada pelo D.J. francês, fundador do grupo. É um produto típico do falso entendimento de que, para apresentar um ritmo original, nativo e forte, é preciso pasteurizá-lo ao gosto americanizado e vendê-lo como se fosse de verdade.
Em alguns - raros - momentos, quando desligavam o baticum, subtraíam o excesso, abandonavam as projeções e ficavam só no piano, bandoneón, voz e violão, aí sim a minha alma despertava, e eu me sentia perto do tango-sangue que aprendi a amar.
Sinto, mas não posso louvar o projeto, a apropriação indébita e desqualificada que fazem da música-marca de um povo. É um corpo estranho, uma visão patética e muito bem embalada, uma pantomima de luxo que não faz jus à bandeira que pretende defender, mas que não defende. Simplifica, reduz e publica no YouTube, para ser descartada logo a seguir.
O Gotan Project é pouco, pouco demais para o tango.

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