quinta-feira, agosto 18, 2005

Vida que explode

Sergio Britto. Ponto final e inicial. Não vale tentar defini-lo com termos extraídos do catálogo normal do nosso vocabulário. Ver o Sergio em ação é reaprendê-lo sempre, pois nada é e nem pode ser esperado; é um testemunho novo, reinventado, reescrito, reinterpretado com uma autenticidade absolutamente autoral e viva, verdadeira, que não se repete jamais, ainda que um mesmo texto, voz e expressões sejam evocados a cada noite. Tudo o que parece ser igual, na verdade é sem igual. E Sergio Britto, 83 anos e a mais absoluta expressão da vitalidade de corpo, alma e coração, se dá de presente à platéia, aos afortunados por estarem diante dele, a cada dia com a mais absoluta originalidade. E com a generosidade de quem aprendeu a viver tudo de novo, com todas as forças, a cada momento.

Jung e eu, eu e Jung: idéia, texto e arquitetura de grande beleza, mérito dos autores Domingos de Oliveira e Giselle Falbo Kosovski, sem dúvida, mas costurado direto no corpo, na alma, na anima de Sergio Britto. Ou terá sido essa anima a se imiscuir na própria criação, dando-lhe a essência que subverte as palavras de tal forma que as transforma em vida orgânica, numa globulina espiritual que faz tremerem as veias de quem as presencia, como se o próprio sangue não agüentasse ficar preso no corpo da gente? Sergio Britto dividido e multiplicado nas peles do Dr. Jung e do ator Leonardo-Svoba-ele-mesmo que vai vivê-lo, os dois tecidos um à imagem e semelhança do outro, separados apenas por obra e graça de um cênico par de óculos, é a expressão máxima do que seria, para mim, uma definição de "vida". Vida que urge, que teima, que incandesce, cresce, domina, envolve, seduz, distribui-se, alaga, enreda e se doa completamente.

E o nosso Sergio maior - aquele que aprendemos a amar pelo talento, grandeza e peso intelectual na história do nosso teatro - prova mais uma vez que é muito, muito mais que isto. Menino sempre pronto para o novo, o surpreendente, o inusitado, o inimaginável que no entanto o confirma: Sergio nas mãos da vida e a brincar com ela, a dar-lhe voz aqui, voz ali, a argumentar e contra-argumentar com tudo o que é improvável, mágico e belo. E só, inteiro, desarmado diante do enorme, enorme desafio. Sergio é a sinceridade sem disfarces, é aquele que se entrega com tal intensidade a quem quer recebê-lo que acaba fazendo parte de sua alma.

No encontro amoroso com Jung via Svoba, Sergio nos convida e nos leva ao espaço sem gravidade das emoções mais profundas, praticamente exige que abramos nossa alma e deixemos de lado as vidas diárias tão exigentes para
fluir com ele e seus personagens rumo àquilo em nós que quase sempre não ousamos tocar. E súbito as teorias se tornam leves, permeáveis, acessíveis ao coração como um sopro da vida verdadeira que ele solta no ar, pega quem quiser, contamina-se quem estiver pronto e disponível.

Sergio e sua vida pulsante são um tesouro fantástico que absorvemos com uma estranha felicidade, um sorriso avarento de quem descobre de repente que possui ao menos um pedacinho da maior obra de arte jamais concebida, e que pode dispor dela à-vontade mas não pode contar a ninguém, não, não deve, pois quem sabe, Deus o livre, ela pode de repente se esvair e então, como fica o coração?

Sergio Britto, Carl Gustaf Jung, Leonardo Svoba. Nomes novos e eternos para a nossa esperança e um lampejo de felicidade e vida, vida, vida para aplacar a dor dos tempos e nos fazer tomados, num instante único, da sensação de que podemos ser melhores.

Nenhum comentário: