quarta-feira, agosto 24, 2005

Abaixo a arte, viva o cenário????

Sem a menor vontade de voltar a mencionar o caos mental em que caímos, talvez por influência da crise nacional de auto-estima provocada pelos ventos dircélicos e delubianos, devo dizer que me espanto em verificar que esses sintomas vêm atingindo também a arte. E de forma grave, a tal ponto que até experientes críticos confundem muitas coisas - e passam a louvar o que não acontece em lugar do que acontece.
É meio como naquele recurso de computador em que você move uma forma "para trás" ou "para a frente", dependendo das circunstâncias. E às vezes o que você move para trás pode ser muito mais importante do que o que acaba ficando na frente.

Assisti na estréia ao duplo Schoenberg produzido pelo Theatro Municipal do Rio, composto da ópera Erwartung e do balé Noite Transfigurada. Para mim, foi um acerto em muitos aspectos: o bom-gosto, o refinamento, os intérpretes, a direção, a coreografia, concepção, bailarinos, figurinos e cenário. Na ordem em que aprendi a compreender a cena teatral, a primeira coisa visível aos meus olhos e ouvidos é o artista. Através dele e de seu desempenho é que entram em cena a competência da direção, no caso da ópera, e a coreografia, no caso do balé. Os figurinos complementam, a iluminação realça, o cenário situa.

E nessa produção não foi diferente. Os dois momentos nos trouxeram suas lições de beleza e intensidade, força, sutileza, poesia.

Confesso que o dodecafonismo exige sempre de mim um esforço maior, já que sou mais afeiçoada ao melódico. Mas ouvi com o maior respeito a ópera Erwartung que, embora não empolgue, é carregada de um drama profundo e pungente. A concepção me pareceu sensível, exata. Laura de Souza correspondeu plenamente e conseguiu manter a intensidade, que foi o que mais me prendeu desde o início. Lamentei, como tenho certeza a maioria dos presentes, a falta das legendas. Uma obra difícil como esta, que exige do intérprete um esforço quase sobre-humano, já que a protagonista deve comandar a cena sozinha no palco com sua dor e desventura, teria na legenda um apoio essencial. Aliás, legenda não é uma praxe, algo dispensável em ópera: faz parte da função, do contrato que se celebra entre espectador e obra.

Soube no intervalo que a ausência das legendas foi imposição unilateral do cenógrafo, pois segundo ele desviaria a atenção do "seu" cenário, e aceita sem questionamentos por parte da direção da casa.

Este foi o meu primeiro espanto. Não compreendo, já que o cenário de Erwartung é deslumbrante e sem dúvida nenhuma extremamente valorizado pela iluminação. A legenda, obrigatória, fez falta à compreensão do todo e prejudicou o resultado.
Noite Transfigurada foi, no mínimo, um prazer indizível; impecável na estética, poético no movimento, artístico até mais não poder e de um refinamento a toda prova, o balé criado por Fábio de Mello é novo na maneira de traduzir em formas a sensualidade e a tensão da música. Além disso, valoriza cada dupla de bailarinos em particular, exatamente naquilo em que cada uma tem de melhor. Um grande poema sob medida, sem fragmentações, sem resvalar em mesmices, com beleza romântica e humana ao mesmo tempo. O conjunto masculino que representa a noite, mas que também poderia representar o lado sombrio do coração daquelas quatro mulheres em uma, enquanto permitem assomarem seus sentimentos de dúvida, medo e insegurança, faz uma costura de cena belíssima, com figurinos afinados com as tonalidades da iluminação. São seres fantásticos e, por isso mesmo, as roupas assinadas por Rosa Magalhães fazem questão de sublinhar esse aspecto mágico de um poder que envolve, oscila e circunda a consciência que se debate.

Para mim, foram emoções na medida; enquanto Erwartung me atirou no chão com alguns arranhões, Noite Transfigurada me deu uma oportunidade de arriscar a jornada do herói e chegar a uma espécie de iluminação, mesmo carregando a dor como documento da alma.

Mas o que eu não sabia é que o meu espanto cresceria imensamente nos dias que se seguiram, ao me deparar com as críticas de Roberto Pereira, ontem no Jornal do Brasil, e Silvia Soter, hoje no Globo.

As opiniões de ambos fazem coro em ponto e contraponto. O que as diferencia, basicamente, é a elegância, no caso de Silvia Soter, e o escárnio de Roberto Pereira. Tamanha concordância só fez aumentar o meu leigo espanto, após uma noite de estréia em que a platéia simplesmente não permitia que a cortina se fechasse, tamanha a felicidade coletiva pelo belo resultado. Será que os críticos são pessoas tão acima do bem e do mal que conseguem enxergar monstros onde os pobres mortais da platéia só vêem flores?

De tudo, o que mais espanta - com a devida vênia pelo uso excessivo, esta é a palavra que melhor traduz o meu estado de espírito - é que o cenário seja mais festejado pela crítica do que a obra de arte! Roberto Pereira, inclusive, chega a considerá-lo "sozinho em cena", desprezando solenemente coreógrafos e bailarinos! No Globo, o cenário ganha inclusive uma crítica própria, de Luiz Camillo Osório, que ressalta seu "diálogo" com a música de Schoenberg...

Francamente, creio que um amante de música ou dança jamais pagaria um ingresso para se sentar no Theatro Municipal e assistir a um cenário que dialoga com a essência da música dodecafônica e dispensa a presença de orquestra, maestro, cantores e bailarinos. Ainda que esse cenário seja assinado por um importante artista plástico brasileiro - e que seja belo, sensível e bem executado. Na ópera ou no balé, cenário é um elemento complementar, sem que isso desmereça sua importância. Quando um cenário ganha espaço na mídia e é exaltado acima do conteúdo do espetáculo, alguma coisa está muito errada. E, como testemunha, posso dizer que o erro não está, de modo algum, no conteúdo de uma produção competente e bem realizada, apoiada no talento de gente experimentada e sensível como o maestro Colarusso, o diretor da ópera, Gilberto Gavronsky, a intérprete Laura de Souza, o coreógrafo Fábio de Mello e, meu Deus, bailarinos da estirpe de Ana Botafogo, Áurea Hammerli, Nora Esteves, Sandra Queiroz, Marcelo Misailidis, Vitor Luiz, Joseny Coutinho e Paulo Henrique. Emoldurados luxuosamente, diga-se de passagem, pela iluminação de Paulinho Medeiros.

Senti farpas de maldade na crítica de Roberto Pereira, que não conheço; agulhas espalhadas em várias direções, dando a nítida impressão de querer atingir alvos específicos. Já Silvia Soter foi mais técnica e comedida, objetivando o tema com o suporte da lógica e da técnica. Ambos, porém, apressaram-se em rotular Rosa Magalhães, deixando de captar sua poética construção para os figurinos do balé, em absoluta sintonia com as necessidades de expressão e movimentos. As alusões ao carnaval me pareceram uma tentativa de anular as múltiplas competências da figurinista, como se fosse obrigatório comparar projetos em nada comparáveis.

Na minha felicidade em assistir ao espetáculo e me orgulhar dos nossos artistas, não me preparei para a ferocidade com que alguns podem se dedicar a minimizar o talento e o profissionalismo deles. O que fica é um estranhamento, uma ponta de desconforto e também uma certa revolta, porque, ainda que os textos sejam assinados, ninguém, nem mesmo os autores, pode responder pelo estrago que eles causam. Daí a importância de se assistir, a todo custo, à arte em ação no palco, ainda que essa arte tenha defeitos, pois fatalmente terá qualidades. A arte verdadeira e sincera sempre emocionará o público, pois vale mais que milhões de palavras-agulhas, expressões-dardos ou frases-morteiros soltas ao vento.

Um comentário:

Maurette disse...

Estou testando a área de comentários, para ver se se tornam acessíveis.
Mb