segunda-feira, outubro 06, 2014

No tempo da delicadeza


Marapé, de Carmela Gross: até 14 de dezembro no mam/sp

Chego quase tarde, no fim do dia, ao Museu de Arte Moderna de São Paulo, para ver Marapé, o mais recente trabalho da artista paulistana Carmela Gross.
- Ah, da Carmela é aquela parede ali - informa, alheia, uma das recepcionistas.
Como assim, só?, estarreço-me.
- Não é não - corrijo, num mísero triunfo sobre a insensibilidade. - Aqui na escada tem também.
E me pergunto como alguém consegue trabalhar num ambiente de arte sem ter a menor conexão com o que acontece ali.
Canga, cuati, guatambu, cutucar, jacaré, maguari, cumbuca, ariri, araçá, jacarandá, guaimbé, buriti, indaiá. Palavras em tupi, a língua geral paulista, que demarcam o território do planalto de Piratininga. São lugares, animais, acidentes geográficos que, já da escada, antecipam o percurso imaginado por Carmela Gross para  homenagear os mais de dois milhões de imigrantes que, segundo o Arquivo Público do Estado de São Paulo, desembarcaram na capital paulista desde o século 19.
O que seria só uma parede, na lógica da moça da recepção, se abre aos meus olhos como uma imensa travessia, em que os nomes, idades e países de origem dos imigrantes compilados por Carmela Gross, imortalizados em placas esmaltadas e coloridas de vários tamanhos, vêem cruzar seu caminho rios, lagos, plantas, animais, em seus nomes tupis. A disposição das placas privilegia claros que sugerem o que há de fluido e desconhecido na aventura quase sempre forçada de partir para uma terra distante, deixar tudo para trás e recomeçar do zero, enfrentar a fúria e a incerteza dos mares, sem a menor ideia de como será, ao chegar ao destino. É um traçado em que dor e esperança se misturam ao tentarmos adivinhar, no olhar daqueles nomes, o que teria acontecido com cada uma das pessoas que nos convidam a partilhar o seu destino.
Os milhares de imigrantes vindos da Itália, da Alemanha, de Portugal, da Áustria, da Espanha e de tantos outros lugares, em ondas que começaram com o fim da escravidão negra e encheram as lavouras de possíveis operários estrangeiros, naquele momento na condição de quase escravos, estão profundamente imbricados no tecido social que formou a cidade de São Paulo. Aqui depositaram suas esperanças, pensaram suas feridas e criaram um caldo cultural inestimável - uma identidade como poucas para a cidade que a obra de Carmela Gross nunca perde de vista. O conjunto de epopeias pessoais que apenas adivinhamos, entre tantas marcas de um tempo de delicadeza, evoca um pouco a ideia que está expressa no próprio nome da mostra: Marapé, que pode muito bem ser mar-a-pé - atravessar a pé um mar imenso, muitas vezes inóspito, que nem sempre é feito só de água, afinal.
Caminhar em meio aos nomes, idades, países, rios, lagos e bichos cria um espaço de reverência por esse passado tão crucial e tão ressonante, até hoje, para São Paulo. Melhor dizendo, para um Brasil que se fez plural, receptivo e múltiplo em sua formação.
Marapé é um poema amoroso que faz, de tantas histórias, vidas e contradições, matéria-prima de uma arte rigorosa, profunda e coerente, marca absoluta do talento de Carmela Gross.








Um comentário:

Maurette disse...

Danielle Crepaldi Carvalho, minha querida, aqui está o seu comentário divino! Muito obrigada pelas palavras carinhosas e por sua aguda percepção! A Carmela com certeza gostará de ler este comentário, que eu inadvertidamente excluí antes de publicar, devido ao pouco espaço entre essas duas teclas no computador pequeno. Mas o texto está aqui, na íntegra! Agradeço novamente! Um grande beijo pra você!

COMENTÁRIO DA DANI

Bom dia, Maurette!

Excelente resenha, minha amiga! A arte contemporânea precisa de ensaístas sensíveis como você. Diante de trabalhos como esse, o vulgo acaba fazendo considerações semelhantes à da recepcionista do museu. Desde que as vanguardas deslocaram a análise da arte de critérios como sua "beleza" inerente, se faz fundamental a análise do contexto para que os trabalhos sejam compreendidos. O modo como Carmela constrói a homenagem ao povo paulistano, tão misto, me parece cheia de de delicadeza. Fiquei com vontade de vê-la. E você, quando voltar a Sampa, vá ver a Bienal e a mostra Histórias Mestiças, no Tomie Othake. Tenho certeza de que vai gostar muito!

Bjos
Dani