sexta-feira, setembro 24, 2010

Muito além do alto da rua

Foto: Divulgação

No espaço coreografado do silêncio, um ritmo quase respiratório se revela na entrada progressiva de bailarinos em excelente forma, com a disciplina das aulas saltando à vista.

O Grupo Impacto, da cidade de Viçosa, começa com firmeza a impactar (não posso resistir!) os olhares e sentidos curiosos de sua primeira platéia no Rio de Janeiro.

Tenho a sorte de fazer parte dela. De ser, ainda sem o saber, testemunha de um momento muito importante para a dança no Brasil.

A história de Adriano Luis Ramos, Alex Luis Ramos, Cleison Lana, Jean Carlo do Nascimento, Luis Filipe Claudino, Rafael Gregório, Rodrigo Abranches e Wellington Júlio poderia ser igual a tantas outras, belas e essenciais num país tão desigual como o nosso: buscar a arte como caminho para transcender justamente a desigualdade e sua prima-irmã, a violência. Mas é isso apenas em parte; no que sobrenada. A história que começa a ser contada a partir de No alto da rua, espetáculo concebido e coreografado pelo emblemático Mário Nascimento para o grupo, que também participa da criação, é a da arte mais primal e verdadeira, aquela que sai dos poros e emoldura um sério trabalho de criação, pesquisa, competência e talento. E que transita muito além de qualquer conceito de projeto social, por mais relevante que seja.

Os movimentos do que se ensaia como dança de rua, hip-hop e estilos correlatos, são, na face da verdade, ballet - dança pura e torneada, com leveza e técnica, com apuro, elegância. Um a um, em anárquica sincronia, os oito bailarinos penetram o silêncio sem medo ou exageros. Há um profundo senso de medida na paixão com que executam o que Mário criou em cima de seus corpos tão hábeis em descortinar cada movimento sabendo exatamente onde vai dar, onde falsamente se interrompe, onde recomeça, para onde evolui

Em meio à densidade provocada pelo larguíssimo e sincopado silêncio, que conduz a uma suave mixagem para a porção Metallica da trilha, o movimento começa a edificar o enredo sem máscara que circula nas ruas de tantas cidades brasileiras. Reconhecemos o abandono, o desamparo, o medo, sintomas rotineiros no dia a dia de muita gente que mora onde, aparentemente, não mora ninguém. A perfeição da coreografia é proporcional à resposta dos bailarinos, que são maduros e consistentes. Nada acontece por acaso, nenhum gesto é perdido. Mesmo o constante enlear, enroscar, agregar e desagregar do desenho de conjunto é uma aliança essencial dos corpos contra os perigos insondáveis da noite. Tudo brota do movimento – as primeiras divisões, disputas, isolamentos, associações. Estabelece-se, pouco a pouco, a regra não escrita do mando das ruas, marcada por histórias de submissão e mais abandono, demarcação de território, sacrifício, crueldade.

Com o uso de um único tipo de recurso cênico – pequenos caixotes retangulares – o grupo monta uma infinidade de cenas que refletem o dilema diário que muitos jovens são obrigados a enfrentar: disputas de poder e controle sobre áreas dominadas, trocas de favores, risco de vida, a violência como um hábito, banalizada e, no entanto, absurdamente real.

A ocupação do palco é primorosa: desenhos vigorosos, ágeis, rítmicos. Às vezes sufocantes, porém reais até a medula; às vezes nem a gente, na plateia, consegue respirar direito. A aflição se antecipa e vem dosada, contida, em pequenas e decisivas golfadas. Os movimentos são belos, líricos até, executados com técnica; são, sobretudo, harmônicos. A crueza dos sentimentos partilhados já parece suficiente. Desnecessário agredir a estética coreográfica para expressá-la.

Surpreendente o uso dos temas dos Racionais pelo coreógrafo: a voz de quem rompe o círculo de medo e impotência sobe do palco para a plateia, como a simbolizar que eu posso ser você, assim como você pode ser eu. Os dois raps falam a língua dessa galera, do mundo que os recebeu e onde se reconhecem, mas não sem esperança, sem luta, sem ideais; muito ao contrário, com tudo isso junto – e encarado de frente, com força de mudar.

Vejo os bailarinos que se alternam entre a boca de cena e o vão central ascendente da plateia, entre solos e conjuntos. E penso em MV Bill. Que também sonhava com uma realidade nova e conseguiu construí-la. Aliás, não só isso: conseguiu compartilhá-la e buscar mudanças. Bill sempre fala à alma porque, em franqueza absoluta e até nos momentos de aparente descrença, exala esperança e responsabilidade. Esperança nas pessoas e responsabilidade por levar a mensagem certa e ter a atitude certa aonde quer que vá.

Eu poderia passar a noite inteira aqui discutindo minúcias técnicas – e todas elas seriam pontos a favor do espetáculo. Os figurinos do próprio Mário Nascimento são factuais, sinceros, convincentes. A trilha sonora, primorosa e perfeitamente ajustada. A luz, impecável, cria o momento presente e todos os outros tempos, em modo de flashback, memórias, reflexões, sonhos. Tudo isso é tecido imperceptivelmente junto com a coreografia, a trilha sonora, os sentimentos expostos visceral e ternamente. E que nos contagiam com uma força enorme.

O ballet de Mário Nascimento, criado para esses virtuosos bailarinos que apenas utilizam como “disfarce” a estética da dança de rua, é um acontecimento no cenário da dança brasileira. É uma semente forte se rompendo no meio da terra. Um rumor que se propaga com muita velocidade. Em breve tempo, vai ser uma gritaria inequívoca a favor do belo – e da felicidade a que todo artista tem direito: a felicidade de fazer, da sua arte, salvação para quem dança, para quem assiste e até para quem apenas ouve falar dela.

No alto da rua é um espetáculo para não se perder.

Corram, por favor, corram ao Centro Coreográfico do Rio de Janeiro antes que o domingo se acabe!

2 comentários:

Reyner Araújo disse...

Oi Maurette.
Ficamos muito felizes com seu texto, com seu olhar atento e suas palavras de incentivo. Sou fotógrafo do grupo, acompanho eles desde o início da montagem, e vi um pouco as pedras do caminho. Seu texto foi lido depois da última apresentação. Foi como o champanhe do campeão. Serviu pra mostrar a eles que valeu a pena, que o caminho está aberto à frente. Nossa diretora, a Patrícia Lima, ficou saboreando as palavras e seus significados durante todo o jantar. Quando você falou do grupo, de alguma forma falava da história de vida dela, que sempre esteve à frente, atrás, na coxia, nos bastidores, enfim, correndo atrás pra que tudo desse certo.
De novo, em nome do grupo, nosso muito obrigado.
Um grande abraço das Minas Gerais.

FRED SALIM disse...

Amei.
Realmente esta fantastica e acho que é por ai.
Quero você ao meu lado em 2012.
FRED SALIM