segunda-feira, outubro 04, 2010

Sob a luz de Marlene

Marlene Dietrich - Foto: coleção particular


Há alguns anos, um amigo me deu de presente a autobiografia de Marlene Dietrich. Até hoje não sei dizer se ele teve alguma razão especial para isto. O que sei é que meu vivo interesse pela mítica figura – que mal conhecia, além de alguns filmes – transformou-se, ao longo daquelas duzentas e poucas páginas, numa absurda e inesperada intimidade. Bem parecida, aliás, como a que experimenta o personagem Albert do espetáculo “Marlene Dietrich: as pernas do século”, após horas e horas de uma conversa surpreendente com a diva, a meio caminho entre o fascínio e a vertigem, entre o susto e o encantamento. Aliás, a boa e simples ideia de um diálogo perfeitamente possível entre duas pessoas “comuns” à sua maneira – a estrela, com sua profunda lucidez e prodigiosa memória, e o assustado e confuso entregador – funciona muito bem para dar o tom da sensibilidade que perpassa todo o espetáculo.

Sylvia Bandeira, na pele de Marlene Dietrich, fez-me sentir como se captasse no ar o momento exato da síntese: aquele momento definitivo no qual as experiências e vivências humanas e artísticas de uma pessoa se fundem e tudo, de repente, se encaixa – como se os elementos orgânicos, mentais, físicos, artísticos e intelectuais que compõem aquele ser tivessem esperado a vida inteira para, enfim, revelar-se em toda sua beleza, essência e densidade.

Estar linda no palco é apenas o óbvio. Além e acima disto está a luz – que afinal, segundo rezam os cânones do inventor de Marlene Dietrich, Josef von Sternberg, deve vir sempre de cima. E a luz é de Sylvia, em plena maturidade artística, com uma franqueza na incorporação da personagem que vai muito além da postura, do gestual e mesmo do timbre vocal. Com toda a disciplina e estudo que transparecem em sua atuação, ela é verdadeiramente Sylvia enquanto Marlene, e Marlene na pele de Sylvia. A voz, afinada e bem ajustada, abraça sem imitar o estilo e a teatralidade despojada de Marlene Dietrich. E emociona de verdade em várias interpretações. Johnny é o primeiro susto, no mais perfeito clima cabaré, tão típico de Marlene; Falling in Love again, em deliciosa releitura, funciona muito bem. Lili Marlene é um momento fortíssimo; na interpretação de Sylvia cabem, com sutileza e drama, todos os conflitos interiores da estrela e da mulher, naquele período de sua vida. Ne me quitte pas é uma boa e comovente surpresa, enquanto Ich bin die fesche Lola e Just a Gigolo são mais Marlene do que nunca. Sem que Sylvia deixe, em momento algum, de ser Sylvia.


Sylvia Bandeira como Marlene Dietrich
Foto: Antonio Guerreiro (divulgação)


Luar do Sertão, que Marlene Dietrich fez questão de interpretar em sua apresentação no Copacabana Palace, é um episódio que, felizmente, não foi esquecido no roteiro. E Sylvia não tem medo de arriscar o sotaque de Marlene, as pausas, toda uma estética que acompanha o gesto, ao reproduzir o mágico instante em que a estrela tem a delicadeza de falar à plateia em sua própria língua, ainda que só um pouquinho.

No palco, tudo é econômico sem ser contido, e por isso transborda: a presença da luz certa, a qualidade da música (que pontua sem invadir), os incríveis figurinos. Vale a menção a um elenco muito equilibrado. José Mauro Brant consegue ser o mais comum dos comuns como o entregador Albert – desajeitado, desconfiado, ingênuo. É de uma verdade cativante. E sai-se muito bem nos vários papéis alternativos, cantando e dançando à luz de uma época. Silvio Ferrari é como se fosse a face do bom e velho teatro: encarrega-se com sucesso de várias encarnações quase simultâneas e é convincente na maior parte delas. Talvez menos como Maurice Chevalier, mas mesmo assim comove quando enuncia detalhes quase etéreos, esquecidos no fundo da memória, da linguagem corporal do velho chansonnier. E canta! Aliás, um charme especial do espetáculo é utilizar o canto à moda antiga, ou seja, teatralmente, a serviço do drama. Com tudo o que tem de benfazeja para o nosso teatro, a avalanche de musicais chega a tornar-se cansativa por fazer justamente o contrário: o drama é que, muitas vezes, serve aos trinados e às exibições de vozes portentosas. Na sala de estar de Marlene Dietrich, nos magníficos flashbacks que comanda com sua vigorosa narrativa (pontos sucessivos, aliás, para o texto primoroso de Aimar Labaki), temos teatro o tempo inteiro. Sem que qualquer dos números musicais, mesmo os mais comoventes, se sobrepuje à dramaturgia.

A excelente Márcia Cabral, que hoje atende por Marciah Luna Cabral, é uma peça importante desse conjunto. Nos momentos em que é simplesmente atriz – como a filha Maria, a irmã Elisabeth, a mãe Wilhelmina, a ama Tamara – sua intensidade é marcante, afinada com o tom quase minimalista da direção. Apesar de sua bela voz e de sua versatilidade musical, tão essencial ao conjunto do espetáculo, faltou Piaf em sua Piaf. Mas aí, justiça seja feita: ainda que por um instante apenas, é mesmo difícil ser Piaf depois de Bibi Ferreira...

Dentro do extremo bom-gosto que reveste toda a produção, os figurinos se pronunciam com bastante veemência. As roupas de Marlene falam – acariciam, sussurram, convidam, impõem, dirigem movimentos, são emblemas de toda uma época. É bonito ver as calças bem cortadas, os coletes, os chapéus, até mesmo as peles (afinal, os tempos eram outros mesmo). A farda do Exército norte-americano quase “protagoniza” o momento Lili Marlene do espetáculo. Como tirar os olhos dela? E o vestido da apresentação no Copacabana Palace, acrescido da capa que adorna o grand finale, é uma evocação do que se pode chamar de verdadeiro glamour. Aliás, isso me faz lembrar a deliciosa discussão de Marlene e Albert a respeito de Madonna. E tenho de concordar com a estrela: pose não tem, absolutamente, nada a ver com classe. E muito menos com glamour! É, os tempos de fato são outros. E as estrelas também...

Marcelo Marques veste com habilidade os mil e um personagens em que se reveza o elenco. Nisso, também, está o tom discreto, despojado, real, que envolve todo o espetáculo. Essa escolha é, a meu ver, fundamental para que a essência de Marlene fosse tão bem delineada. Lembro que, na leitura da autobiografia, eu me detive muito nas partes em que ela se referia a Sternberg e no que aprendera com ele sobre a luz. Não admira que o diretor William Pereira tenha se espelhado nisso. Afinal, o que a gente vê não é sempre a luz?

E o que a gente ouve, em “Marlene Dietrich – As pernas do século”? Ambientação musical de primeira, totalmente sintonizada com a direção. Os excelentes músicos Roberto Bahal, que além de atuar ao piano assina a direção musical e os arranjos, Luciano Corrêa (violoncelo) e Vinícius Carvalho (sopros). A gente os ouve com imenso prazer, mas não chega a vê-los. Está aí mais um toque de mestre: a música faz parte da cena, os músicos do cenário. Mais um velho segredo do teatro, muito bem materializado pela direção. Isso para falar apenas da música incidental. O excelente roteiro musical merece um aplauso especial.

Senhoras e senhores, Marlene Dietrich! Por favor, desliguem o tempo presente e ocupem suas cabines para viver, em duas horas, os melhores 90 anos que já lhes foi dado viver!


2 comentários:

As Tertulías disse...

Gostaria de ter visto... Nao consigo imaginar Bandeira (mas isto pelo fato dela ainda ser uma verde ajudante de apresentador de programas de perguntas e respostas quando deixei o Brasil, nao a conheco como atriz). Gostei do comentário sobre a "luz" de von Sternberg. Sim, sim, sim... veja um dia "The devil is a woman" (por causa desta bendita luz a camera parecia "fazer amor" com Dietrich). E adorei aprender sobre o episódio Copacabana Palace. Nao sabia! Voce como sempre nos dando tanto! Espero que este comentário seja motivo para mais postagens suas... OK????

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, Maurette.

Que maravilha de post! Adoro o modo como você escreve. A poesia que sai de seu texto me convenceu plenamente a ir ver o espetáculo.

Marlene Dietrich é maravilhosa. É incrível quando um artista consegue vestir a pele do personagem que interpreta - especialmente quando o personagem é tão pulsante quanto Marlene. Nesses momentos a gente vê como, em tempos de produção desenfreada de lixo cultural, a verdadeira arte ainda pode ocupar o primeiro plano.

Quero aparecer no Rio em algum momento no final desse ano para ver umas peças sobre as quais muito tenho ouvido falar. Essa sem dúvida será uma delas. Você sabe se a temporada dura até o final do ano? E o espetáculo está em cartaz onde?

Beijos, querida
Dani