terça-feira, novembro 14, 2006

Jorge Palma

Ela estava lá há um bom tempo, como quase tudo que se quer baixar no eMule. Hibernava, esquecida e desesperançada, entre as centenas de canções da minha fila. E de repente, eis que de repente, encontro-a ontem inteiramente verde, o que significa pronta, baixada, liberada: "Like a rolling stone", de Bob Dylan, cantada pelo Jorge Palma - esse grande, grande artista português que só vim a descobrir há uns poucos meses, mas que fixou de vez residência entre os queridos da minha alma.
Não posso mentir: a gravação não é apenas caseira, é horrível. Escutar qualquer coisa, em meio ao burburinho geral e ao som abafado e distante, é uma façanha. Apenas adivinha-se ao longe o que seria, deveria ser, uma grande interpretação de Jorge Palma para um clássico da minha geração e da anterior, mas o resultado é precário. Dá a impressão que foi feita com um gravador desses pequenos, de repórter, por cima de um muro ou de um mar de gente talvez.
Mesmo com tudo contra, "Like a rolling stone" me emocionou. Porque só um fã de Jorge Palma, em seu ardor para proteger, preservar e cuidar de tudo o que diz respeito ao Mestre, poderia tê-la feito.
Jorge Palma é um desses artistas que os tempos velozes não fabricam mais. A um imensurável talento e bom gosto estético, sem falar nas ricas referências de seu vasto universo cultural, somam-se os dons do músico, irretocável ao piano, do compositor profundamente fértil e do arranjador de primeira. Em suma, é um verdadeiro escândalo.
Desde que o descobri, numa tarde perdida de junho, quando um amigo fez-me a gentileza de oferecer "Diz-me tudo", uma canção de outros autores que foi tema de uma telenovela em Portugal, algo em mim mudou. Já na introdução pude notar que estava diante de algo diferente, e senti que devia prestar muita atenção. Daí para cá, lancei-me à busca por esse pedaço que faltava no quebra-cabeça do meu sentimento da arte: ter Jorge Palma bem ao meu lado, um companheiro de viagem como o foram, desde sempre, Chico, Caetano, Gil, Milton, Ivan Lins e tantos outros sem os quais não poderia viver da forma que vivi até hoje.
Nessa busca encontrei toda a beleza das canções, e a alma do artista a escorrer por elas. Deparei-me, também, com vários lados de Jorge, um tipo verdadeiramente afeito à aventura de viver, encantador, disponível, muitas vezes perdido também. Mas o que realmente me explicou Jorge Palma foi o contato com seus fãs.
Cada fã de Jorge Palma é uma espécie de tradução da sua obra, um guardião sempre a postos para proteger alguma coisa. Uma canção, um fragmento de canção, um velho long-play, um retrato amarelo, as bebedeiras, os comprimidos, a letra das músicas que ele esquece, os atrasos para começar os shows... nada escapa a essa verdadeira legião de memorialistas que, unida, cuida dele e ainda oferece, generosamente, tudo quanto é informação relevante para quem, como eu, apenas começa a buscá-lo.
Fã de Jorge Palma é quem está sempre disposto a segui-lo na estrada, viajar umas centenas de quilômetros, ficar sem dormir e ir trabalhar no dia seguinte. É a turma que está pelos 50 e também a galera que está pelos 20. É quem se sente só mesmo acompanhado, é quem se estranha no espelho mas é capaz de voar no trapézio e dizer "Bom-dia!" ao mundo quando se enamora. É toda uma tribo que passeia entre o avesso e os prodígios, mora no bairro do amor e acredita que não há passos divergentes para quem se quer encontrar.
É alguém que grava "Like a rolling stone", mesmo que não dê pra ouvir direito, só para que o momento não se perca.
Jorge consegue esses milagres, será talvez o único num tempo meio sem cor, cada vez mais longe da poesia. Mas Jorge é poesia, e enquanto poesia desfaz as rimas previsíveis, solta-se no ar preso apenas no fio elástico da sua arte, para que esta o leve aonde não poderia ir apenas com suas próprias pernas.
Jorge Palma, sempre com o coração às tantas, emociona de verdade. É a melhor fotografia do sonho que começa e acaba, para começar de novo, nas canções. E os fãs, que tudo sabem e guardam no silêncio, são capazes de adorar, redimir, perdoar e amar incondicionalmente. Cuidam dele, se o momento exige; erguem-no à glória, quando é tempo de glória. É como uma família, uma estranha corrente de luz a circundá-lo.
Por isso é que essa "Like a rolling stone" furtiva, confusa e abafada é muito, muito importante. Porque parece dizer ao Jorge que, onde quer que ele for, alguém irá ao seu encontro na estrada. E estará com ele para o que der e vier.
Ave, Jorge Palma, e seu séquito "palmaníaco". É uma honra enorme, para mim, fazer parte dele.

3 comentários:

Anônimo disse...

Sem dúvida..like a rolling stone...
Agenda artística do mestre Jorge Palma actualizada em www.bloguepalmaniaco.blogspot.com
newsletter/informações: contactar ladoerradodanoite@hotmail.com

Musicologo disse...

Eu ainda tenho presente em mim um momento muito bonito: No Jardim de Inverno do Teatro de S. Luiz, num concerto íntimo em Fev 2004. O Jorge olha para o filho mais novo e diz "Filho, esta é para ti" e toca... "A Pantera cor-de-rosa" do Mancini...

Mais um momento irrepetível do Jorge, como só ele sabe fazer!

Anônimo disse...

"Fã de Jorge Palma é quem está sempre disposto a segui-lo na estrada, viajar umas centenas de quilômetros, ficar sem dormir e ir trabalhar no dia seguinte..."


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adorei o seu texto :)
só mesmo quem é fâ é que pode sentir isto na pele como vc tão bem traduz.
Adorei este parágrafo!!!lindooo