terça-feira, outubro 04, 2005

Adeus à favorita

"Ela é fã da Emilinha
e do César de Alencar
dá um bote no Cauby
pra depois desmaiar
Pega a Revista do Rádio
e começa a se abanar!"


Desde que o mundo é mundo, as gerações se lamentam sempre que um pouco do seu mundo começa a ir embora para dar lugar ao novo. E logo vem alguém a rotular: "Saudosismo! Bobagem!". Uns concordam, outros não; eu, mesmo sentida, às vezes devo admitir que, de fato, nada é para sempre mesmo.

Mas há coisas que, apesar de muitos pesares, se mantêm vivas dentro das culturas. Não é que o nosso Brasil seja lá tão rico nessas raridades, mas ainda guarda algumas permanências que emocionam.

Uma delas é o fã-clube da Emilinha Borba, de sempre grata lembrança e sorriso brejeiro, estrela que gerações e gerações aprenderam a admirar. Ao ver hoje as comoventes cenas do velório e do enterro da eterna Favorita da Marinha, não pude deixar de me emocionar com a melhor lembrança que guardo dela, traduzida no imenso amor que seus fãs de todas as épocas sempre lhe dedicaram.

Já não me lembro mais quando foi, mas lá se vão pelo menos uns 25 anos. Um belo dia eu, apaixonada por carnaval e ratazana de todo tipo de espetáculo que acontecia entre o centro da cidade e o final do Leblon, resolvi assistir a um show na Sala Funarte, com Emilinha Borba e Jorge Goulart. Nó repertório, claro, só as marchinhas que embalaram minha infância de coração trepidante, ao som das baterias e ao sabor do cheiro de lança-perfume importada que, naquela época, ficava mesmo só no ar - e dava às ruas de minha cidade um aspecto de realeza, ainda que diante de monarcas de lata com seu séquito de índios, tirolesas, baianinhas e piratas.

Na bilheteria, espanto-me ao saber que só tem lugar no chão. Topo a parada e vou me sentar bem lá na frente, quase rente ao palco. Logo ao entrar, não posso deixar de observar a platéia povoada por doces senhoras como a minha mãe, minha avó, as primas de minha avó, todas sem dúvida egressas, via túnel do tempo, dos auditórios lotados da Rádio Nacional das décadas de 40 e 50.

Em pouco tempo, a sala está que já não cabe uma mosca. No meu cantinho, puxo conversa com dois entusiasmados senhores que não economizam detalhes de sua rica história de fãs; penalizados com minha total ignorância sobre os momentos mais cruciais da vida da estrela, tratam logo de me atualizar. E nos poucos minutos que antecedem o início do espetáculo fico sabendo tudo, mas tudo mesmo, que se passou com Emilinha Borba nos últimos quarenta anos.

O entusiasmo dos dois artistas, que desde a infância me acostumei a ver no Almoço com as Estrelas do Aérton Perlingeiro, aqui se confunde com o entusiasmo da platéia, que não desdenha uma letra sequer; todos cantam todas, gritam, aplaudem, festejam. E eu me sinto feliz por participar, sentir de perto essa força.

"Como, você nunca falou com ela? Coitada!!! Ah, mas isso não pode ficar assim de jeito nenhum!", diz um de meus novos amigos. Súbito, no auge da Chiquita Bacana, eis que sou erguida pelos dois até, pasmem, a altura do palco, para apertar a mão da Emilinha! Do alto de sua baiana de prata, a bela me estende o braço recoberto de pulseiras e oferece a mão e o sorriso. Um tanto ofuscada pela euforia, percebo as serpentinas e confetes no ar, o movimento das dançarinas ao fundo, quase como em câmera lenta; atrás de mim, os aplausos e os gritos continuam.

Satisfeitíssimos, meus companheiros me descem e o show continua. Alegria pura e sem vaidades, o ritmo velho conhecido das marchinhas renovadas, esperançosas de viver para sempre no coração de quem canta, seus males espanta, Colombina, onde vai você? Eu vou dançar o iê-iê-iê! Emilinha toda prosa, nostalgia cor-de-rosa, muita, muita gente feliz.

Na saída do teatro, meus agora amigos para sempre fazem questão de me levar, Cinelândia adentro, até o ponto do ônibus que devo pegar para Laranjeiras. No caminho, apontam para o último andar do prédio do Amarelinho e dizem: "Lá em cima é a sede do nosso fã-clube. Tem todas as faixas de Favorita da Marinha, fotos, muitas coisas. Ah, e todo mês nós fazemos um jantar em homenagem a ela! Sempre que está no Rio, ela faz questão de prestigiar!".

Isso sem falar nos presentes, inúmeros e freqüentes, com que os fãs sempre fizeram questão de mimá-la. "O único que ela não aceitou foi uma grande cama de casal", explica um deles. "O marido, na época, não concordou", suspirou o outro.

Democráticos, elogiam Marlene. "Não temos nada contra a outra, claro. Somos amigos dela também", concedem.

Desde esse dia passei a acreditar que o fã-clube da Emilinha, como todo bom fenômeno sociológico, devia ser estudado. Tema de tese de mestrado e doutorado.

Mais recentemente, uma matéria do Jornal Hoje mostrava Emilinha, cheia de energia, vendendo e autografando seus CDs na Cinelândia. "Aqui vocês compram direto da fonte e ainda ganham o autógrafo!", brincou, lembrando a falta de espaço, nas gravadoras, para as boas e velhas marchinhas. Achei lindo, corajoso, a cara dela.

Hoje, ao ver a mesma Cinelândia tratá-la praticamente com honras de estado, enquanto seus fãs lotavam a praça e cantavam sua tristezas nas letras de seus sucessos inesquecíveis, senti que o mundo ainda pode ser bom, que ainda é possível cultivar lembranças que, de tão doces, tornam-se alento para a vida inteira. Ao largo da família e dos amigos, anônimos aos milhares, os rostos marcados pelo tempo e alguns até com dificuldade de caminhar, retribuíam a Emilinha toda a alegria e inspiração que ela lhes trouxe. Se esse Brasil que fez de Emilinha Borba uma estrela de gerações ainda está vivo e é capaz de chorar cantando, em uníssono, na sua despedida, então ainda podemos ter esperança.

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