domingo, agosto 23, 2009

À Motown, com carinho




Viver a década de 1970, com seu colorido e contradições, foi um privilégio para mim. Com meus 14, 15 anos, adorava usar sandálias trançadas na perna, os ousados verde-limão, rosa-choque e laranjão que coloriam as roupas, o psicodelismo em todas as imagens, caminhar contra o vento, sem lenço e sem documento. Se havia um lado triste - a repressão indiscriminada, o obscurantismo e seus efeitos desastrosos na educação do nosso povo, a perda de grandes talentos brasileiros nas mãos de um monstruoso aparelho repressivo -, havia um lado adolescente legítimo, que era vivido irremediavelmente. E isso incluía as "brincadeiras" (pequenos bailes que acabavam por volta da meia-noite) no Cana Esporte Clube, em minha Barra Mansa natal, os Festivais da Canção que revelaram tantos talentos preciosos... e os artistas da Motown.
Ainda tenho vários compactos simples e duplos da gravadora que revelou alguns dos maiores talentos negros da América: Diana Ross, Michael Jackson, Marvin Gaye... Por isso foi um prazer muito grande assistir ao espetáculo O som da Motown, idealizado por Renato Vieira e Cláudio Figueira.
A concepção é inusitada: cinco cantoras representam todos os artistas da Motown, revezando-se em figurinos e gêneros, numa sucessão bem organizada e profundamente representativa dos tempos de ouro da gravadora. E que cantoras! Mais que isso: que boas atrizes! Simone Centurione, Thalita Pertuzatti, Ellen Wilson, Alcione Marques e Débora Pinheiro dão um verdadeiro show de versatilidade.

Aliás, é bom que se faça um parêntese com relação à recente "era dos musicais" do teatro brasileiro, que nos tem oferecido safras e safras de cantores-atores-dançarinos muito dotados e poderosos! Tudo é questão de oportunidade: os americanos não nascem sabendo, mas aprendem tudo isso nas escolas e aperfeiçoam depois. Está provado, com os nossos musicais, que não somos nem melhores, nem piores: com oportunidades iguais, sem dúvida ganhamos pelo número, pelo colorido e pela diversidade cultural! O talento brasileiro tem um tempero que ó, só aqui mesmo.

Para situar a platéia, não faltou uma eficiente vídeo-reportagem retratando as contradições e alegrias de uma época de mudanças. Não faltou também a luz negra e o charme que embalou nossa juventude entre-mundos. Em cena, o poderoso time de meninas desfila os sucessos da Motown com classe, elegância e, antes de tudo, voz. Voz verdadeira, cheia e poderosa, sem artifícios, direta e profunda. Destaco o belo timbre de contralto de Alcione Marques, apesar de sua evidente dificuldade com a pronúncia das letras. Os figurinos são extremamente fiéis e de bom gosto, além do ajuste perfeito.

É claro que não há como falar em Motown sem falar 'dele', Michael Jackson. Nesse particular, cabe uma observação importante: O som da Motown estreou três semanas antes do ato final do ídolo. Não há, pois oportunismo algum na mais bela homenagem que poderia ter sido feita, em qualquer tempo, ao artista. A cena é de uma simplicidade tocante e, confesso, me fez chorar muito. Afianço que não fechei luto por Michael e o produto em que se transformou ao longo do tempo: lamentei, apenas. Mas ao ver o seu momento em O som da Motown, vivi um luto muito maior, diferente.

Em um cenário praticamente às escuras, havia apenas um rasgo de cortina aberta, como que a mostrar um segundo palco lá dentro. Em cena, apenas a cantora Simone Centurione, a única branca do time, em traje de época e peruca black-power, observa as imagens que se insinuam no rasgo da cortina: Michael Jackson garoto, com seu sorriso aberto e limpo, de terno amarelo-ocre. Simone começa a cantar Ben, a cappella. E é secundada por Michael. Segue-se um dueto sentido, brilhante, honesto. Impossível não se pensar na essência de Michael Jackson, apenas um menininho começando a vida, uma criança cheia de sonhos, alegre, verdadeira. As pessoas que só conseguem ver a criatura disforme em que o artista, por razões diversas - medo, dificuldades internas, o que fôr - acabou se transformando, decerto não se lembram, em momento algum, daquilo que ele era, da matéria pura de que era feito. Criança. Talentoso. Fértil. Aberto. Apenas alguém que era o que era.
Tocada pela singeleza, chorei por Michael, pela criança a quem não foi dado, verdadeiramente, o direito de existir. E tive saudades de Ben, a canção dedicada a um ratinho e tema de um sinistro filme que, de certa forma, prefigura o lado dark da futura vida do menino:

They don't see you as I do,
I wish they would try to,
I'm sure they'd think again
if they had a friend like Ben...

"Eles não o enxergam como eu; gostaria que ao menos tentassem, pois tenho certeza de que pensariam diferente se tivessem um amigo como Ben." É o que parece nos dizer Simone, porta-voz mais que habilitada da homenagem - um dos grandes momentos de um espetáculo que, sem pretensões e com rara competência, é um dos melhores musicais da temporada, sem dúvida alguma.

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