segunda-feira, abril 21, 2008

Talvez seja cedo...



... para falar de dores e filhos, filhos dos outros, mas ainda assim filhos, crianças que nascem, florescem e morrem, vítimas da insanidade e da estupidez. Talvez seja cedo - ou quem sabe tarde? Talvez a hora seja incerta para qualquer tentativa de pensar as feridas de mães que perdem suas crianças para a violência do mundo, do medo, da alma. Ou talvez seja tarde para lamentar, em vez de tentar mudar a sociedade, as leis e os estatutos impostos por uma impossível ordem social, ou às vezes uma desordem afetiva de dimensões endêmicas.

Às vezes acho que perdemos o gosto de lutar, nas águas que levaram a certeza tão inabalável que tínhamos de que havia um lado "do bem" e outro "do mal". Do lado do bem estava a esquerda que nos apaixonava romanticamente, um mundo ideal onde a justiça social operaria milagres e transformaria vidas, acabaria com a indústria da seca no Nordeste, com as favelas e com todas as enfermidades que nos dividiam em castas, guetos ou ideologias. Hoje materializam-se os piores pesadelos futuristas, há um Rollerball em curso e mais violento ainda do que o filme que tanto me apavorou, isso na primeira versão, com James Caan. Quatro ou cinco empresas donas do mundo, e todos os jogadores têm de morrer, precisam morrer para legitimar os valores alicerçados no nada. Será que alguém ainda se rebela???

Penso na sensação de turbulência, a bordo de um avião. Nesses momentos tenho sempre a compulsão de fechar os olhos e me agarrar aos braços da poltrona. Mas na mesma hora digo a mim mesma: estou me agarrando a quê? O que é um avião a tremer no vazio? Qualquer contratempo e o nada nos engole fácil, fácil. Vivemos hoje a turbulência na pele. Um dos homens que mais admiro neste mundo, por sua coerência e verdade - valores raros como o Santo Graal hoje em dia - vive em Jerusalém e admitiu, um dia, que não podia indicar aos filhos um caminho seguro até a escola. Esse mesmo homem, o grande escritor israelense David Grossman, um dos mais ferrenhos defensores da paz e do entendimento, perdeu um de seus filhos na guerra do Líbano. Mas em quê Jerusalém é diferente do Rio de Janeiro ou de São Paulo, na guerra urbana que nós, reféns inapeláveis do crime e da brutalidade, travamos todos os dias? Como se isso não bastasse, estamos também à mercê de outras guerras, aquelas lutas internas impossíveis de se perceber no rosto de quem passa, ou de famílias aparentemente normais, que vão ao supermercado com as crianças e, poucas horas depois, são personagens de tragédias inacreditáveis como a morte da menina Isabella.

Sim, era disso mesmo que eu queria, precisava e preciso falar. E relutava por pensar que pode ser cedo, ou terrivelmente tarde, para entrar no mundo das hipóteses num caso desses. Em momento algum deixo de pensar em João Hélio, trucidado por duas bestas humanas sem motivo algum - e é impossível não comparar as duas histórias. Dois bandidos, dois animais, acharam "divertido" crucificar uma criança indefesa e acabar com a vida de uma família. O Brasil se chocou, o mundo se chocou, as mais inabaláveis convicções sobre a espiritualidade foram postas em cheque. Mas o que se pode pensar - e me perdoem se é cedo ou se é tarde para mexer nessa ferida - de um pai que não só permite como participa da violência contra sua própria filha, uma criança de apenas cinco anos? Está certo que não se pode condenar ninguém sem provas concretas, mas o quadro que se afigura a cada dia é mais tenebroso, é mais angustiante e nos deixa mais e mais perplexos. Lembro-me de um outro episódio de alguns anos atrás, cujos nomes e referências perderam-se na memória. Um pai, que perseguia a ex-mulher e tinha a obrigação de levar as filhas gêmeas todos os dias ao colégio, planejou nos mínimos detalhes uma vingança absurda: matou as duas meninas a tiros e suicidou-se, deixando uma carta que condenava a ex-mulher a sofrer pelo resto da vida, para "pagar" por algo que supostamente lhe teria feito.

Todas as informações que me chegam, no caso de Isabella, me assustam pelo caminho de violência que descortinam. Aquela violência profunda que turbilhona dentro da alma, e que leva pessoas aparentemente comuns a atos de extraordinária torpeza. Não me cabe aqui discutir as conclusões dos legistas, o rio de incertezas e evasivas que cerca todos os envolvidos, os desencontros que distorcem qualquer senso de justiça, a demora que nos leva a temer que haja mais Paulas Thomaz e Guilhermes de Pádua soltos por aí, com o "direito" de ter vidas normais, mesmo após terem sido julgados e condenados pelo crime hediondo que o país inteiro testemunhou.

Nessa hora só consigo pensar na mãe da menina Isabella, na mãe das duas gêmeas que o pai assassinou, na quantidade enorme de mães - e pais também, por que não? - que, por força da lei, têm de permitir que seus filhos pequenos passem fins de semana com o pai ou a mãe em ambientes sobre os quais não têm controle algum. É óbvio que não se pode julgar a maioria das pessoas pelos parâmetros patológicos que cercam o caso de Isabella, mas eu duvido que um certo arrepio não tenha passado pela cabeça de muitas mães e pais que porventura tenham algum tipo de conflito ou incerteza em relação a seus ex. Eu mesma sou mãe solteira e, talvez por presente do destino, nunca precisei passar por essa experiência, mas lembro que, quando a minha filha era pequena, tinha a mais ferrenha convicção de que nunca saberia lidar com isso.

Assim como o Brasil inteiro, eu espero e anseio e rezo para que a Justiça seja implacável com os assassinos de Isabella, sejam eles quem forem. A velha máxima de que "o direito de uma pessoa termina quando começa o de outra" precisa voltar a ser praticada em sociedade, para que tenhamos alguma esperança de nos curar das epidemias sociais que destroem e matam muito mais do que a dengue ou a febre amarela. Matam mais gente, destroem as ilusões e as esperanças, corroem brutalmente a sociedade e qualquer tipo de valor ético que ainda se tente sustentar. Precisamos reaprender a lutar pela nossa própria dignidade humana, pela compaixão e solidariedade perdidas, para deter o comércio abusivo de almas em troca de marcas famosas ou quinze minutos de fama em reality shows. Precisamos voltar às ruas com bandeiras e talvez cravos, com hinos e muita vontade, com um coração de estudante disposto, sobretudo, a reconstruir.

Se assim fizermos, talvez não mais seja cedo nem tarde. E talvez seja possível deter as lágrimas e o ranger de dentes, pois, como dizia Geraldo Vandré num tempo em que acreditávamos que éramos capazes de quase tudo, "quem sabe faz a hora, não espera acontecer".

Um comentário:

Odele Souza disse...

Maurette querida,
Andei ausente de teu blog por ter vindo aqui algumas vezes e não te encontrar nas palavras que tão bem escreves para demonstrar emoções e sentimentos.

Tomara que não muito longe de hoje, as pessoas passem a denunciar todo e qualquer tipo de violência contra crianças ou adultos e cobrem de quem de direito a punição exemplar dos culpados. Da forma como dizez em teu texto. E que a justiça se faça, que de imediato se faça.
Um beijo.