quarta-feira, abril 02, 2008

Improviso



O espaço-tempo que me envolve não possui gravidade; avolumo-me sem fronteiras perceptíveis e apoio-me docemente no nada, que estranhamente não me devolve às impressões comuns de segurança, objetos com forma e cor e volume. Há uma profunda renovação celular em curso, não reconheço aspecto algum do meu próprio corpo; sobrevivo à varredura das estrelas e assemelho-me mais a uma fina onda de areia celeste, rebrilhante, a tomar formas várias num leito azul-escuro, infinito, insondável. Há um prazer alongado nesse sentir-se assim dispersa, pontilhada numa carta celeste, meio constelação, meio lembrança do que talvez tenha sido antes de ter perdido tão suavemente, quase sem perceber, a referência da matéria. É como descansar supostos músculos num banho de meteoros, que ora fervem, ora esfriam, é tocar de leve algum fundamento muito remoto da formação do Universo, entre sensações que perpassam a pele e sonoridades que relaxam o elemento potencialmente espiritual que ainda me garante essa espécie de registro akhásico, essa frágil construção de memória.
Ser parte da poeira estelar é insanamente confortável; ondas magnéticas reconstroem as sensações mais sutis, como mover um dedo, reviver um arrepio, uma onda de desejo, associar os sons que adejam em volta da luz, a formar padrões muito definidos, matemáticos... sim, há matemática nas estrelas e na música, e esta as leva muitas vezes ao limite do intangível, onde a música se entrega sem resistir ao imperativo das forças cósmicas, como Richard Strauss, talvez... Quem poderia sonhar que Assim falou Zaratustra tornar-se-ia quase indissociável das estrelas? Enquanto fragmento de corpo celeste, poeira ou sucessão de pontos de luz, ouço Richard Strauss a conectar-me as mais ínfimas partículas, a retecer-me enquanto alguma espécie de matéria, é às vezes Zaratustra, às vezes Vida de Herói, outras vezes Elektra a transformar sua dor em beleza, mas nada em mim dói, tudo flui e se encompassa, formando cadências de imensa claridade a mergulhar sem medo nos espaços escuros e sentir-se umedecer de finas alegrias, muito finas alegrias que desmancham e recriam a idéia de corpo que antes existia e agora já faz pouco sentido diante das imensidões onde navego, revisitada de luzes e sinfonias.
O manto celeste é generoso e parece colher-me, ainda sem peso e inexata, em seu abraço de vaga noite, e reconstituir-me delicadamente as moléculas recheadas de eternidade.

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