sábado, agosto 11, 2007

Deusa pagã dos relâmpagos


Os mesmos pés descalços, o mesmo leve gingado que, no auge dos anos, enlouquecia a todos... e bem menos timidez do que naquele início do início, no Teatro Opinião, de coque na nuca e roupa preta, aquele fatídico início que nos condenou a amá-la para sempre.
A mesma doçura na voz nos momentos doces, abandonados... e a mesma fortaleza numa voz já outra, na hora de levantar o canto guerreiro, o canto do peito aberto; as mãos que firmam passo e dançam acima da cabeça, o olhar que brilha e nos atravessa com a sua espada da lei, da lei do encanto com que nos prende e nos leva, leva, leva, leva, beta, beta, Betha, Bethânia, Bethânia de todos os ventos, deuses e vagas do mar.
O mesmo tudo que é sempre todo novo. Bethânia é sempre nova e linda, é sempre menina e senhora do engenho, com palavras que sempre batem bem fundo no coração de quem, anos a fio, limpa num pano de prato, no guardanapo, no xale do vestido, as mãos sujas do sangue das canções que dela vêm, e pra ela voltam entre rasgos de poesia e a ondulante maresia que procura dentro um rio, um rio feito de música e de água também.
A Bethânia que nos toma a todos ao primeiro acorde, antes mesmo do primeiro aceno, antes mesmo de aparecer, é igual - e melhor - com os anos. Os fartos e naturalíssimos cabelos, que um gesto aparentemente simples joga para trás, a envolvem numa espécie de moldura luminosa, um halo de energia que a clareia inteira. Bethânia, faceira e menina, senta-se com o povo no meio-fio para puxar as cantigas de ninar mais esquecidas, mais guardadas no fundo da memória. E aquela Bethânia de ventos e raios, que com um único gesto sabe bem arrebatar milhares, irrompe em meio ao nosso silêncio com mimos de Luiz Gonzaga, com ventos de Caymmi a mover os barcos, com auroras de Chico Buarque a acordar amores. Linda e visceral nos vermelhos da saia de ares cuzquenhos, ou doce e saltimbanca num visual mais nostálgico, branco, profundamente circense.
Essa Bethânia criança e mulher reinventa-se igual, mas respira o novo em nossa nuca, acorda-nos com poesia, convida-nos à roda. E vamos todos, ora em coro, ora em silêncio, ao comando da rainha do cordão encarnado.
Bethânia foi sempre assim, a Natureza em technicolor e dolby stereo. Com o seu jeito todo exuberante de explicar o mundo sílaba a sílaba, palavra por palavra, meticulosa como um ourives atento ao mais microscópico detalhe da peça que cultiva como se tivesse vida.
Amiga íntima, quase parente, conta todas as nossas histórias, desfia os rosários e nos mostra, na janela do tempo, a nossa própria alma lavada, perfumada de música e sentimento, recendendo às águas de colônia da infância, aos limões de cheiro de que apenas ouvimos falar um dia, aos pães quentes das pretas velhas, à fuligem das fogueiras ao pé das quais chamamos assombrações, os olhos escuros de medo, as mãos dadas na noite.
Bethânia solta e só, diante da coragem da vida. Despida dentro do branco das vestes, todas as cores da alma nas mãos, inteira e pronta para chamar o vento. O mesmo vento que balança as ondas daquele mar, daquele mesmo mar em cujo fundo há um rio. Rio que nasce na garganta dela e encontra as águas naqueles olhos que podem, se quiserem, parar o tempo.

2 comentários:

Orlando Gonçalves disse...

Apetece-me dizer um ditado que aqui se diz em Portugal "Está como o Vinho do Porto, quanto mais velho Melhor" e Bethânia é isso mesmo, quanto mais velha, mais encantos nos trás.Adoro-a como a uma Deusa não esquecendo o mano com aquela voz doce, meiga e ternurenta. Daquela fornada sairam dois Grandes cantores, poetas. Deus abençoe aqueles pais que ao mundo deram tamanho seres, para nos encantar a todos.

Anônimo disse...

[...]
Canta -dizem em mim - até ficares
como um dia orfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo de cinza trasntornada.
Em dedicatória sangrenta
[..]

Herberto Helder