quarta-feira, dezembro 27, 2006

Um piano com uma história por trás

Há um piano à venda. É um belo Fritz Dobbert de cauda, novo em folha, a laca preta reluzindo, mecanismo e cordas brilhando. A flanela parece que acabou de ser comprada. As teclas em ébano e marfim parecem virgens, as cores firmes, a suavidade que transparece por entre os dedos de quem o toca e o entende.

Esse instrumento que transcende poesia, que reflete no espelho que é o tampo o esforço enorme despendido para comprá-lo, pertence a uma escola de música. Ou melhor, a um conservatório de música, como convém à melhor tradição brasileira. Um conservatório que formou e ainda forma instrumentistas nas mais diversas áreas. Onde se ensina e aprende teoria e prática musical. Um lugar onde se toca e canta por música.

E está à venda, descobrimos por entre os olhos tristes das professoras.

A vida moderna é difícil, a situação do país também. Foi-se o tempo em que o ensino da música era uma prioridade para certas famílias em melhores condições. Quando eu era menina, muitas colegas de escola freqüentavam as cobiçadas aulas de teoria e piano, sonho de poucos (eu, nem pensar, quem dera!). Mas esses poucos ainda eram suficientes para manter em boa posição os conservatórios, onde pacientes mestres dedicavam-se aos alunos, às audições, aos exames no Rio de Janeiro. Uma amiga da mesma geração me contava, há alguns anos, que em sua cidade usavam uniformes com dragonas indicativas do ano de estudo nos ombros, e que os exames anuais eram uma verdadeira agonia, com direito a suor nas mãos e dor-de-barriga...

Os conservatórios funcionavam com o rigor característico do modelo educacional da época. Só que o mundo foi virando e desvirando, a vida tornou-se muito mais veloz, as meninas deixaram de cultivar virtudes e talentos próprios às donas-de-casa para buscar espaço em ambientes antes privativos dos homens, e nesse roldão a música foi sofrendo abalos sucessivos. Depois vieram os anos 70, tempo de transgredir e transformar... A guitarra de Jimmi Hendrix horrorizava os mais ortodoxos e hipnotizada os mais jovens com sede de liberdade para desconstruir e criar. A vida intelectual brasileira era dizimada pela ditadura militar, assim como a economia e o sistema educacional. Seguiram-se tempos mais duros para o emprego e o ambiente social, num processo sem volta. E as transformações levaram consigo muitas tradições importantes na nossa cultura, entre as quais vários conservatórios de música, sobretudo no interior.

Fora-se o tempo em que um entusiasmado Heitor Villa-Lobos recebia carta branca do Presidente da República para transformar o país pelo canto coral e reunia 20 mil vozes, pasmem, 20 mil vozes no Maracanãzinho para celebrar o trabalho que implantara em praticamente todas as escolas públicas do Rio de Janeiro. O maestro acreditava nisso, provou que podia, mas estamos aí até hoje a nos debater em cima das mesmas questões. Nem quando os Titãs escrevem que "a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte", as pessoas entendem. Aquelas aulas de música eram vitais para inspirar, instigar e tirar as crianças da pasmaceira, da mesmice e fazê-las descobrir o mundo através da única linguagem que, até hoje, se provou universal. Esperanto? Uma bonita ilusão. Religiões? Olha o resultado nos jornais todo dia. Só na música as pessoas se encontram de verdade. Só a música é capaz de unir, numa mesma orquestra, africanos, neozelandeses, israelenses, palestinos, vietnamitas. E mesmo que aquelas mesmas crianças não dessem pra músicos, o ensinamento plantava-se dentro delas para que soubessem apreciar, e ensinar aos seus filhos, que um dia existiu um Mozart, um Bizet, um Villa-Lobos, um Carlos Gomes. A música será talvez a única tradição que se mantém praticamente intacta através dos tempos, pois possui som para se guardar na memória. Um livro pode-se queimar, mas a música pode-se lembrar, reproduzir, escrever de novo.

Ficamos piores sem a música. Aliás, ainda que às vezes a gente não se aperceba disso, ninguém vive sem ela, seja qual for o gênero da preferência.

O conservatório do interior possui um piano, e uma bela história de realizações pequenas e grandes. Possui a dedicação de vidas inteiras ali depositadas, empenhadas na plantação diária da sementinha da música, essa mesma que abre as portas do mundo. E possui também dívidas, essas coisas comezinhas que nos atacam no dia-a-dia, é um aluguel, é um imposto, é menos um, dois, mais alunos, é o pagamento de professores, luz, gás, telefone... Dívidas que um piano transformado em dinheiro pode pagar, sim, mas o que paga o piano e sua história? Os jantares beneficentes cuidadosamente arranjados para pagar suas prestações? As vaquinhas de última hora, quando o dinheiro faltou? As personalidades que passaram por suas teclas reluzentes e delas tiraram sons à beira do divino? Os corações que se alegraram com sua música a espalhar-se no ar? Os alunos de primeira viagem, que sentaram-se ao banquinho com as mãos frias e o coração aos saltos, mortos de medo e de emoção, na primeira audição?

Vende-se um piano com uma história. Uma história com suas recordações. Vendem-se lembranças que têm som, têm eco na alma. Triste é o tempo em que se faz necessário transformar em mercadorias as peças sem as quais os sonhos não podem existir.

3 comentários:

Anônimo disse...

É tão bom perceber que não estamos sozinhas e que existem pessoas que embora, fisicamente não estão tão perto mas que se mostram sensíveis aos problemas relacionados à arte.
Muito obrigada em nome da Poliarte! Valeu!

Anônimo disse...

Olha...a unica coisa que consigo dizer é que pela primeira vez eu consegui chorar depois que fiquei sabendo da notícia. Muito lindo o que vc escreveu...posso dizer que sinto a mesma coisa...já toquei nele mts vezes, lembro que só tocávamos em audições pra não "estragar", lembro também do esforço da minha mãe e das outras, com recitais e jantares, pra poder adquiri-lo!
Não quero mesmo que vendam, nem a escola, nem o meu passado.Se Deus quiser as coisas vão se acertar...
Um grande beijo pra você e muito obrigada por tentar nos ajudar dessa forma.Espero um dia poder conhecê-la!

sombra_arredia disse...

http://www.webboom.pt/ficha.asp?ID=109687

vi o teu pedido no blog do Jorge Palma e descobri isto.Não sei é se fazem portes para o Brasil
:)
bom ano