quarta-feira, agosto 16, 2006

Flip 2006, na palma da mão - I

Desde 2004 que a Festa Literária Internacional de Parati me vicia irremediavelmente. Tem o sereno e o ancestral do ambiente a construírem pontes, tem a franqueza da palavra que é partilhada sem avarice, a informação em doses generosas, a normalidade medida pela quantidade de monstros sagrados soltos na rua, a se misturarem aos mortais. Por essas e outras, sou uma dependente confessa da Flip, para onde me dirigi no último dia 9, como faço sempre, uma espécie de rito sagrado a dobrar meu ano literário.
Cheguei cedo, depois de uma viagem algo difícil, administrando um sensível estômago por entre as curvas sinuosas de uma estrada longe da perfeição. Por volta do meio-dia, já está o clima instaurado; a imponente Tenda dos Autores e seu colorido, a Livraria da Vila com sua organização paulistana, os livros classificados por mesa, até edições em línguas originais.
Dei a volta habitual, reconhecendo e repalmilhando o terreno; alcancei a praça, o célebre Bar-Restaurante Coupé com seu charme antiguinho, as ruas que vão dar nas correntes próximas do mar. Ao cruzar a pontezinha embandeirada entre a Flip e a Rua do Comércio, vieram as saudades claras e finas do ano anterior, recheadas da memória de meu encontro com um homem chamado David Grossman.
De tudo o que vi e ouvi, vivi e recebi na Flip 2005, ele foi certamente o melhor, o mais perturbador e mais pungente. David Grossman me chegou na última mesa do primeiro dia, com sua simplicidade boa, um certo ar de sem jeito e uma sinceridade sem limites. Conquistou-me com a verdade da experiência de vida e a transparência das almas vastas. Com ele percorri a Faixa de Gaza e pude compreender sentimentos que, até então, nunca me haviam atingido de verdade. O que antes era informação, fatos jornalísticos, transformou-se em emoção, num certo saber o outro que me modificou profundamente.
Senti-me imediatamente próxima daquele homem do seu tempo, revolucionário a seu modo, surpreendente na sua verdade. E busquei o momento de continuar a conversa, por conta de uma intimidade brotada, uma súbita igualdade incorporada à alma. No domingo, após uma das mesas da tarde, fez-se a oportunidade. Cumprimentei-o e falei sobre o que sentira ao ouvi-lo. Com a mesma naturalidade, pedi para tirar uma foto, com direito a sorrisos e gracejos: "Mas preciso saber mais sobre você; assim fico sabendo com quem estou sendo fotografado..." Tudo tão simples, tudo natural, como diz a letra de uma das músicas "natureza" da minha juventude.
Na mesa de encerramento, que trata dos livros de cabeceira dos escritores convidados, David falou da Metamorfose, de Kafka. E reafirmou seus compromissos da vida inteira com a humanidade e a paz, "como homem, como pai de família, como ser humano, como escritor e em todas as instâncias da vida."
E depois, um brinde à emoção: a Flip 2005 foi encerrada ao som de The Sticker Song, um hip hop composto por ele, em parceria com um grupo musical israelense, com base nas palavras de ordem encontradas em adesivos que ele colecionou, comuns em seu país e que carregam as mais variadas mensagens.
Saí na correria para buscar um sanduíche antes de retornar ao Rio; na volta à pousada, cruzei a ponte e lá o encontrei de novo. Simpático e solícito, veio apertar-me a mão e então perguntei sobre a canção. "Você só tem de se lembrar do nome Hadag-Nahash". Prometi lembrar-me e, graças a isto, pude obter na Internet uma versão para download que tornou-se uma espécie de hino em homenagem a esse homem tão importante para a humanidade, um escritor prolífico e imaginativo, pacifista e militante na rota dos sonhos de paz no Oriente Médio, com quem passei a me corresponder desde então.
Ainda estou na cabeceira da ponte, é 2006, a Flip é nova e cheia de experiências, sentidos e sabores. David, ou a memória renovada do encontro, ainda está comigo na travessia. O domingo final já não tarda, e ainda não posso saber o que ele me trará.
Três da tarde, encontro de Nicole Kraus com Edmund White, rico em experiências diversas e tocantes: a escritora qualifica como "magnífico" o romance "Ver:amor", um dos mais importantes da obra da David Grossman. White concorda e conta que escreveu a crítica do livro para o New York Times, quando foi publicado nos EUA. E então, assumindo um ar mais sério, comunica à platéia: "A propósito, tivemos hoje a notícia de que o filho de David Grossman foi morto num ataque na fronteira do Líbano".
Morri enquanto minha alma gritava, e a dor veio inteira, como uma intoxicação por raiz-forte. O ímpeto de sair correndo da sala foi contido pelas lágrimas que brotaram imediatamente, como se a alma tivesse sido passada numa máquina de afinar macarrão. Desapareci na cadeira e lembrei-me de todas as vezes que, desde a invasão do Líbano por Israel, pensei no rapaz - sargento do exército israelense - e pedi a Deus, egoisticamente, que ele não tivesse sido enviado para lá. Há que pensar na humanidade, reza o politicamente correto, e não somente no nosso quintal. Mas é inevitável, quase que um reflexo, lembrar primeiro de quem se conhece. O David é minha referência e sempre lamentei a sua aversão natural pela Internet, que me impede de mandar um email após cada notícia ruim sobre os conflitos na área.
Penso na dor daquele homem, uma dor que ninguém conhece ou sequer chega perto. Apenas três dias antes, ao lado de Amos Oz e A. B. Yeoshua, David tinha tomado posição em favor de um cessar-fogo urgente, temeroso quanto às proporções que a guerra tomara. Penso no pacifista que me ensinou que é preciso vestir de verdade a pele do outro, buscar o que de melhor existe nele, para chegar à paz sonhada há tantos milênios. Penso no duro teste para o militante comprometido com as causas da humanidade, que tantas vezes se despiu de qualquer caráter nacional para falar unicamente dos seres humanos que precisam ser salvos e ter sua liberdade e dignidade restituídas.
Diante da tragédia, David é apenas um pai que enterra o seu amado filho, que lhe foi tirado na flor dos 20 anos. É igual a tantos libaneses que perderam seus filhos num conflito de ódios baratos, impensável em contexto já tão conturbado. É igual, também, a tantos palestinos que têm a mesma sorte todos os dias.
Igual, sim, mas há uma diferença. David Grossman colocou sua vida a serviço da paz, do entendimento, da justiça. E sempre viveu do combustível de sua entrega. A promessa de ser, sempre, uma voz contra o arbítrio de toda sorte, vem sendo cumprida à risca, com a maior presença e honestidade. Agora, sente esse mesmo arbítrio cortar-lhe a carne no que há de mais precioso, mais profundo, mais básico na vida de um pai ou mãe: proteger o filho, cuidá-lo, dar-lhe segurança.
Meu coração está com David Grossman em seu luto. E, mesmo diante do horror que vivemos, penso em tudo o que aprendi com ele: só podemos nos salvar se tivermos a coragem de enxergar o outro, conhecer sua alma, e ver que, afinal, ele é igual à gente.
A ele, a minha homenagem, o meu respeito e a minha eterna solidariedade.

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