quinta-feira, março 24, 2011

Manoel Francisco no show "Toma um trago e lava o coração"
Foto: Divulgação


Numa curva do tempo, o vento se dobra à verdade da arte. De uma estrofe de Vinícius, de um acorde de Baden e do fundo de dentro de um grande artista brasileiro, nasce um espetáculo que marca um lugar especial na cena do Rio: “Toma um trago e lava o coração”, na voz de Manoel Francisco, é um show musical que a cidade jamais esquecerá.

O talentosíssimo bailarino brasileiro de carreira internacional, que imortalizou diversos personagens nos maiores teatros do mundo, inclusive o Municipal do Rio, põe a nu a sua alma com incrível verdade e beleza. A voz clara, o coração na garganta, a interpretação precisa, o corpo inteiramente musical e uma memória afetiva feita de canções que, para dizer o mínimo, são capazes de contar todas as histórias, são alguns dos ingredientes de um show raro, no mais rigoroso sentido dessa palavra.

Há um bom tempo as pessoas parecem ter se esquecido do valor absoluto da intimidade entre plateia e artistas, hábito que a nossa tradição boêmia cultivava e que criava uma aliança diferente, toda própria, entre platéias e ídolos. A gente até costumava se referir aos nossos artistas pelo primeiro nome: “Ontem fui ver o Chico”, “A Marisa [Gata Mansa] está no Teatro Dulcina”, “a Nara cantou muito bem ontem”, “o Francis está fantástico no show”, e por aí vai. As megaproduções de hoje, além de cortar esse barato, transformam quase tudo em apoteose...

Um momento como “Toma um trago e lava o coração”, no pequeno e aconchegante Espaço Rogério Cardoso, da Casa de Cultura Laura Alvim, a meu ver vale mais que duzentos Canecões, quatrocentos Vivo Rio ou, com o perdão da má palavra, mil e trezentos Claro Halls.

Acompanhado por um baixo acústico, violão e guitarra, Manoel Francisco põe em cena o seu drama e a poesia das canções que ama desde sempre. Esse amor, logo de cara, é o traço mais evidente. Completamente à vontade, como se nos convidasse à sala de sua casa, Manoel conta as histórias das canções e homenageia compositores e intérpretes, como a dupla Evaldo Gouveia e Jair Amorim, Angela Maria e Altemar Dutra (Tango para Tereza, Somos iguais, Brigas) . Em interpretações absolutamente surpreendentes, evoca o Roberto Carlos da década de 1970 (As flores do jardim da nossa casa e Por amor). Ah, como eu me lembro desse disco do Rei, com um desenho a crayon do seu retrato na capa, que peguei emprestado e quase furei, na minha vitrolinha 007 preta!

Manoel Francisco dança com a voz de modo incomum. Se algumas influências transparecem, ainda assim são transformadas por um estilo cravejado de detalhes personalíssimos. Suas escolhas também são únicas: de Piaf, por exemplo, elegeu La Folle, numa versão absolutamente pessoal – que, tocante, ainda assim não nos naufraga, mas nos faz velejar na memória de um dos períodos mais ricos da música francesa. De Aznavour, nada do belo trivial de sempre; o baú de Manoel Francisco é bem mais fundo e recheado. Foi buscar a impressionante Comme ils disent e a mais que delicada Non, je n’ai rien oublié, perfumada de poesia, com a qual fez uma pública e comovente homenagem à primeira-bailarina Cristina Martinelli – que, extasiada, desfazia-se em emoção na primeira fila, ao lado de sua não menos emocionada mãe.

O mais interessante é que a forma de lembrar de Manoel Francisco não é nostálgica, no sentido da palavra; as canções tomam forma e corpo novos, atravessam o tempo com vigor, têm efeito mágico no momento em que se produzem novamente, quase como se estreassem, ainda que vivam, de múltiplas formas, na memória de quem as conhece de outras eras. A direção de Nana Caymmi é outra presença que Manoel pontua, de modo sensível, na história do espetáculo, assim como o roteiro de Alexei Waichenberg. Depois disso – diz, referindo-se a uma sequência que fecha magistralmente com Franqueza, de Maysa – a minha diretora disse: eu só posso sair daqui pra ser esfaqueada! , para dar apenas uma medida da assinatura consistente de Nana no processo. Aliás, a homenagem a Dorival Caymmi não poderia ter sido mais delicada: Um bom lugar/pra se amar/Copacabana... Poesia pura de um Caymmi encantado pelo Rio, cidade e estado que adotou, após se apaixonar por sua Stela, e acrescentou à baianice que imprimiu no nosso sangue para sempre.

O show “Toma um trago e lava o coração”, de Manoel Francisco, deveria ficar em cartaz indefinidamente, e não apenas até dia 30 de março. Eu, pelo menos, jamais vou conseguir me separar dele! É o momento magistral de um artista que viveu tudo e ainda tem muito mais para nos fazer viver. É toda uma nova forma de sentir, evocar, emocionar, fabricar felicidade em forma de canções. É uma voz que cria continuamente, um estilo contundente e novo, entre o nunca-esquecer e o re-conhecer. É uma porta de poesia a nos transportar entre mundos que, felizmente, ainda são possíveis nos dias de hoje, num pequeno ambiente de imensas possibilidades, artísticas e amorosas. A Manoel Francisco, o meu aplauso de pé.

2 comentários:

Anônimo disse...

Deslumbrante.Emocionante.
Além de tudo que já foi dito,acrescento ainda:qualidade,excelencia.Em nenhum momento,perdeu-se o rumo neste inesquecível e arrebatador "Toma um trago e lava o coração".Direção de primeira linha,músicos extraordinários e Manoel Francisco,um artista de múltiplos talentos e fascinante bom gosto.Nestes tempos que vivemos hoje em dia,carecemos de qualidade e sobramos em vulgaridade...Mas,não importa...o grande Artista,como Manoel Francisco,deixará eternamente sua essencia na alma,no coração e na vida dos privilegiados que o assistiram e o ouviram.Non, je n’ai rien oublié Manu!
Obrigada por compartilhar comigo,sua Arte.
Cristina Martinelli

Anônimo disse...

Eu so posso, emocionado, agradecer profundamente esse afago... Nao sei muito o que dizer, fico quieto, comtemplativo diante de tamanha delicadeza.... E da maneira mais sincera, emocionada que se pode dizer..: "Muito obrigado".