sexta-feira, setembro 26, 2008

Che gelida manina...

Giacomo Puccini

Convenço-me de que o povo, aqui no Brasil, gosta mesmo é de falar. Falam quando a coisa é boa, falam quando é ruim, falam de todo jeito. Ao assistir, no dia 19, à última récita de La Bohème, a escolha do Teatro Municipal para não deixar passar em branco o ano Puccini nesses tempos de vacas magras, concluí que é melhor fazer ouvidos moucos à criticagem geral e escutar a música.
Em matéria de dificuldades, o Municipal é graduado e pós-graduado. Não é de hoje que as autoridades abandonam o teatro à própria sorte, como se ele fosse capaz de, milagrosamente, fazer brotarem recursos para atender a gregos e troianos, manter temporadas de diversidade européia, fazer manutenção e tudo o mais que é necessário. É claro que isso não acontece, e a instituição tem que fazer das tripas coração para não deixar a peteca desfolhar-se no chão.
A Bohème saiu, apesar dos pesares. E foi digna das comemorações do ano Puccini, apesar da falta de quase tudo. Orquestra, regente, elenco e técnica fizeram o possível e o impossível para realizar uma produção de alto nível - e conseguiram.
Reclame quem quiser da alternativa, por sinal muito bem aproveitada e interessante, de utilizar projeções de quadros famosos na boca de cena e à guisa de cenários, durante a ópera: se o teatro não tem recursos para construir cenários mirabolantes, por que não criar? Gostei. Ficou bonito, desperta a curiosidade pelas obras, dá um visual requintado. Muito melhor do que certos cenários, no passado, feitos por artistas plásticos afetos a instalações de funcionalidade e estética duvidosas. Há muito, muito tempo mesmo, que não se vê alguém do nível de um Gianni Ratto fazendo algo no Teatro... Acabou que a Bohème e os quadros se entenderam muito bem e a coisa funcionou, no aspecto cênico.
Em termos de música e interpretação, que é o que mais interessa quando se fala em ópera, não tive do que me queixar. Sou grande fã de Fernando Portari e adorei vê-lo novamente em cena. O desempenho vocal foi muito bom e, como ator, também não fez feio, embora eu às vezes tenha a impressão de que há algum tempo vem se desleixando um pouco de si mesmo e da carreira. Em alguns momentos, talvez os mais marcantes, esteve inteiro e doou-se muito ao papel; em outros, porém, me pareceu algo distante. Já Rosana Lamosa, cujo timbre não me agrada tanto, foi se intensificando a partir do segundo ato. Sua "Mi chiamano Mimì" foi sofrível, mas a melhora foi sensivel até o ato final, no qual ambos foram brilhantes. Rodrigo Esteves, Homero Velho e Luiz Ottavio Farias - como Marcello, Schaunard e Colline, respectivamente - formaram um trio coeso, qualificado e de bela sonoridade.
Há, porém, um reparo a fazer: a idéia de transformar a sublime ária de Musetta num arremedo de Marilyn Monroe cantando "Diamonds are a Girl's Best Friends", com dois bailarinos estranhíssimos e coreografia grotesca, foi realmente um desastre. Que me desculpe o diretor de cena Francesco Maestrini, mas aquilo foi uma palhaçada, não tem outro termo. A reação do público foi condigna, diga-se de passagem, no dia em que assisti; perpassavam a cena murmúrios de escárnio. A intérprete Gabriella Pacce também ficou prejudicada, pois como cantar bem, sendo jogada dum lado pro outro como se fosse uma corista? Convenhamos,
um pouco de respeito é bom e o Sr. Puccini gosta, assim como nós, ali na platéia. Foi realmente lamentável que, por causa de uma pantomima mal engendrada, um dos momentos mais expressivos da ópera tenha sido perdido, reduzido a galhofa.
Mas olhando para a cena, do alto da minha galeria G45, não pude deixar de pensar em outra Bohème, de 1981, idealizada por Franco Zefirelli para o Metropolitan Opera. Não, não se trata de estabelecer comparações; essa nossa Bohème acabou por me remeter àquela, a primeira que vi, ainda que em vídeo, e que nunca esqueci. De fato, não há como apagar aquela delicadeza e despojamento que tão bem apresentavam o tom de denúncia social sugerido por Puccini ao retratar toda aquela pobreza em lastimável condição, sem assistência nenhuma, nos bairros boêmios e pobres de Paris.
Pensei na fragilidade de Tereza Stratas, no romantismo vívido de um Josep Carreras no auge de sua forma, na presença de Joseph Morris, nos cenários, figurinos, na música que, como disse o meu vizinho de poltrona, "comove muito, não tem jeito..."
Em março deste ano, Zefirelli foi homenageado no Metropolitan, no entreato da 347a. apresentação de "sua" Bohème, com elenco liderado por Angela Ghiorghiu. Uma montagem que já dura 17 anos e permanece fresca, adorável, perfeita para traduzir Puccini!
Guardadas as proporções, a Bohème do Teatro Municipal marcou presença e demonstrou que, quando os verdadeiros artistas resolvem arregaçar as mangas, sempre conseguem produzir qualidade e beleza.
Tenho a certeza de que o mestre aí em cima, de modo geral, aprovaria.



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