domingo, julho 20, 2008

Hora de encontrar a turma das filas

ESPECIAL FLIP 2008

Flip 2008: embandeirada
Foto: Maurette Brandt


A Festa Literária Internacional de Paraty, ou simplesmente FLIP, tem lá suas peculiaridades: todos os anos a compra de ingressos é uma angústia longa que se transforma em stress e, às vezes, tem final feliz. Estamos sempre sujeitos ao enlouquecimento espontâneo de um dono de pousada que pode, a qualquer momento, ter um surto e achar que está perdendo dinheiro: motivo suficiente para aumentar preços sem critério e suscitar uma longa e complexa negociação. Isso sem falar nas passagens de ônibus, o já proverbial tem-não-tem-ônibus-extra, quando todo mundo sabe que vai ter, tem que ter, pois a procura é grande e a empresa, logicamente, não vai querer deixar de faturar.

Mas essas coisas todas têm um pouco de graça. Todos os anos tem a célebre fila nos pontos de venda, pois os pobres mortais que se candidatam à verdadeira prova de resistência que é assistir a 20 palestras - ou mesas, como a organização as chama - à razão de cinco por dia têm de aguardar ansiosamente que seja anunciado o dia da venda e o horário em que as bilheterias, a internet e o telemarketing vão abrir, sempre todos ao mesmo tempo. Tudo em nome de uma democracia fictícia que pressupõe - em intenção, não em gesto - garantir o acesso de todos.

Meu ponto de venda é a loja da Modern Sound, em Copacabana, a dois passos de casa. Sempre acho que serei a primeira, pois tenho uma paciência praticamente inquebrantável para me enquadrar em longas esperas. Pois este ano fui a terceira - o que parece bom, salvo se a velocidade dos compradores (e vendedores) online não superar a compra direta. No caso da Flip, nunca se sabe. Mas a fila - que na Modern Sound merece a deferência de um civilizado par de bancos compridos - é um local de encontros. Você sempre vê as mesmas pessoas, conhece algumas novas, ouve histórias, administra os boatos que proliferam - é mais caro, tem taxa, não tem taxa, acho que já acabou e terrorismos desse quilate - e, no mínimo, tem diversão garantida por algumas horas.

Este ano, o "sistema" - nome genérico que no meu tempo personificava a ditadura e hoje representa a rede informatizada - ia abrir às nove. Sabedores disso, os pontuais fileiros pediram ao dono da Modern Sound para abrir a loja antes do horário normal de nove e meia. Às dez, já com quase três horas de fila e muito papo rolando, foi anunciado aos quatro ventos pelo segurança, no papel de um autêntico jogral, que haveria um atraso. A tensão progride, alguns gesticulam, outros tentam por telefone, alguém diz que em casa não conseguem acessar as vendas pela internet.

- É o sistema...

Por fim, às onze-quase-doze, o tal sistema resolve funcionar. Só deixam entrar um de cada vez, para não dar problema; aguardo por minutos agora intermináveis na porta, até que me liberam. No caixa, porém, dá-se o milagre da suavidade. Peço dois pacotes completos, entrada inteira. A menina processa e os ingressos começam a jorrar rapidamente da impressora. Em menos de 15 minutos, tenho todas as folhinhas na mão, com as mesas discriminadas e os hologramas perfeitos para leitura eletrônica. Em nenhum momento ouvi algo sequer parecido com "Acho que não tem..." Pago e, na dúvida, resolvo afundar-me numa das poltronas da Modern Sound para destacar os ingressos, contar e conferir.

Tudo certo. Já é quase uma da tarde. Despeço-me de um ou outro companheiro de fila e sigo para casa carregando os preciosos (e caros) ingressos para a Tenda dos Autores. Ao chegar, descobriria que esquecera os óculos no balcão, mas foi só questão de telefonar e passar para pegar no dia seguinte.

Uma amiga que comprou por telefone sofreu um pouco mais, pois era sempre o número 89 ou coisa que o valha na fila de espera, mas afinal foi atendida e comprou o que queria. Já no ônibus, porém, começo a ouvir histórias de não-tem; gente que chegou à noite e não achou quase nada, gente que viu a fila de idosos arrebatar o estoque inteiro...

Uma coisa eu aprendi, no penoso ano em que a venda ficou por conta das Americanas.com; a Flip não põe todos os ingressos à venda no primeiro dia. Eles dividem em cotas e vão soltando aos poucos. No tal ano das Americanas, quando entrei na internet - poucos minutos após a abertura das vendas - já não havia quase nada. Comprei o que pude e, dia após dia, dedicava-me ao trabalho de formiguinha de garimpar ingressos. Nesse afã, acabei conseguindo entradas para quase todas as mesas na Tenda dos Autores.

Já em Paraty, nas seis filas que se formam para o acesso à tenda - que continuam absolutamente manuais, mesmo após seis anos - a gente encontra o pessoal de todos os anos. Há pessoas com quem nunca trocamos uma palavra sequer, mas que conhecemos de longa data - quer dizer, de longa fila. A senhora acompanhada da filha, que quase sempre é a primeira como nós, a outra senhorinha de descendência indígena, os cabelos ainda pretos, outras duas amigas que sempre vêm... Criamos um vínculo estranho com essas pessoas. O fato de vê-las parece nos assegurar uma familiaridade, um compromisso inusitado que só se dá com flipianos: o início de julho é guardado a sete chaves para aqueles momentos ora fortes, ora perturbadores, ora engraçados, para aquela sala-de-estar com escritores que a gente admira, com outros de que só ouvimos falar e muitos que nem isso. Mas aprende-se, e como! As idéias e linguagens nos cercam com sua novidade e espírito. Cabe a nós aproveitá-las e engordar a alma de beleza, realidade, inconformismo, susto e emoção.

Porque a Flip, com seu jeito único, é um pouco de tudo isso.

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