sexta-feira, maio 16, 2008

Sobrevivência

Dor


Ando na rua e tento lutar contra a pressa; observo. Não necessariamente em busca de um fato novo; faço o que posso para registrar a magia do corriqueiro, do comum, do casual. Nas quadras em torno de casa, que freqüento religiosamente por razões domésticas - mercado, farmácia, caixa eletrônico, banca de jornal - tenho um bom retrato de uma Copacabana que não engana mais ninguém. Hoje, expor as vísceras virou uma dolorosa moda que nos impõe, a cada dia, os tons sem tom de sua passarela.

Observo a crescente população de panfletadores. É uma polpuda massa onde cabem todas as idades, desde o senhor de poucos cabelos brancos à senhora de quadris mais pródigos e calça colante - passando, é claro, pelos rapazolas de bermudão e camiseta e as menininhas mais ao estilo funk. Deve ser duro disputar centímetros de calçada, todo dia, com vários concorrentes - e para entregar um produto que ninguém quer! Pois eu pego senão todos, quase todos esses papeluchos que oferecem dinheiro rápido, compram jóias, vendem serviços. E não é raro receber de volta um aliviado "obrigado" . É, deve ser duro entregar panfleto em Copacabana.

A linha de sobrevivência está cada vez mas tênue nesse território de diversidades. Palavra essa, aliás, que a cada dia se esvazia mais. Tenho observado como as palavras, num mercado de poucas verdades, vão sendo saqueadas: carente, cidadania, risco social (agora é "vulnerabilidade"), diversidade, diferenças... A síndrome do politicamente correto tem o dom de desvitalizar o idioma e nos deixar mais pobres, mais sem sentido. Nunca pensei que esse tipo de doença fosse tão fatal para a língua. Daqui a pouco não teremos mais o que dizer.

O que vejo, sem nuances, é a miséria mesmo. E ela se agiganta. Não falo como os incomodados de ocasião, nem como quem pede que "tirem essas pessoas da minha vista". Não. Vejo a miséria a rondar-nos muito de perto. Ninguém está imune à destruição que ela infunde em tudo: crenças, valores, sentimentos, conduta, na mesa e nos móveis da casa, na roupa que vestimos, naquilo que comemos. Viramos egoístas por centavos - e por necessidade. Temos tanto medo de viver que disparamos um pico de adrenalina a cada vez que enfrentamos (sim, enfrentamos) a rua. O velho prazer de bater perna está carcomido pelo medo dessa miséria que avança e toma conta de cada canto. O que antes era um simples moleque, no doce conceito "literário" do nosso cotidiano, hoje é uma arma em potencial. Não conseguimos mais dizer, sem hesitar, que vivemos na melhor cidade da América do Sul, baby, eu sei que é assim, como Caetano nos ensinou um dia. E nem podemos dizer, como Geraldo Azevedo, que em Copacabana tudo é rei... e rainha. Em Copacabana, tudo é grade, tranca e ferrolho, do Leme ao Posto Seis. No shopping-cidade onde moro, que a vida inteira exibiu com orgulho suas cinco entradas para três ruas, erigiram feias grades de alumínio anodizado, totens da desesperança que de dia pendem sobre nossas cabeças, ameaçadores, e de noite fecham-se sobre a liberdade como uma sentença perpétua.

Por que temos tanto medo da miséria? Por que não nos dedicamos, de corpo e alma, a eliminá-la?

Por que não queremos essa responsabilidade. Mais fácil delegá-la às autoridades, sob a frágil desculpa de que pagamos nossos impostos, e se alguém rouba no Governo, não é culpa nossa. Não queremos agir por meios pequenos, não buscamos organizar-nos dentro dos valores que por tantos anos defendemos, mas que na verdade não temos, ou perdemos. Será que não existe uma forma de nos entendermos e trabalhar sem disputa, de modo limpo, pelo bem-estar de todos? Nós, a população enjaulada que pensa ser a mocinha da história, fechamos todo dia os nossos olhos aos pigmeus do boulevard, nas santas palavras de Aldir Blanc. (Sim, a nossa música-retrato é uma fonte inesgotável de bons exemplos que ainda não se consumiram na autofagia das mentiras travestidas de benevolência). Precisamos acreditar que, se uma pessoa que vive na rua não come, um dia ela virá - e com justa razão - cobrar a conta diretamente, com os meios de que dispõe. E não há sociologia, por mais lúcida que seja, que possa resolver.

Vamos esperar mais o quê? A tão falada (e tão vazia!) justiça social tem que ser hoje. E nós temos de ser capazes de realizá-la, pois os discursos já não conseguem nem disfarçar a medonha face da tragédia nacional que presenciamos. Num mundo de privacidade zero, não há criancinha que não saiba dos males do mundo. A barbárie corre nas nossas veias, não é atributo exclusivo da massa que viceja diante dos nossos aterrorizados olhos, como se não fizesse parte do mesmo mundo. Nós a alimentamos com a nossa indiferença cortante. Assim como foi na Revolução Francesa, essa massa já nos atinge em cheio, e não há argumento que a convença a voltar ao seu território. Ela não se contenta mais com isso, já perdeu o que tinha a perder e agora, o que vier é lucro. Doa a quem doer.

Vamos acordar o que ainda nos sobra de princípios e vontade - e fazer a hora, como disse um dia o Geraldo Vandré, num mundo onde ainda havia espaço para muita fé no poder de gente unida. De baixo para cima, como formiguinhas operárias, com a mão na massa mas gritando forte. E com a certeza de que, se não formos à luta para trazer de volta o bem comum, se não dermos de nós para que ninguém mais tenha de sacrificar-se por uma casa, um buraco, como disse Maiakovski pelas palavras de Caetano na canção que, não por acaso, se chama Amor, um confronto maior, mais duro e mais sofrido será inevitável.

Temos de agir com pouco, mas organizados e coerentes, para fazer muito. Com nosso tempo engolido, nosso pouco dinheiro, nossa força de pressão em cima do síndico, do vereador, do subprefeito, enfim, sabendo o que fazer, onde ir e como conseguir que a população saia da inércia e abra espaço para que todos possam primeiro sobreviver - e, logo em seguida, conhecer o doce sabor da dignidade.

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