Um tom plangente corta o frio da madrugada; ao longe, e lá do alto, vem a música cujo intérprete desafia as inclinações quase impossíveis dos telhados simples de Anatevka, acocorados nas frias encostas de uma Rússia enclavada no tempo. A música é triste, ainda que bela; e, em sua dolência, faz com que todos se sintam em paz.
É assim, falando dos violinistas que se equilibram nas alturas, que o leiteiro Tevye, um aldeão pai de cinco filhas, começa a delimitar os horizontes da vida em sua comunidade, emoldurado pelos acordes que nos ferem com doçura a alma. É o começo de Um violinista no telhado, o musical de 1965 criado por Jerry Bock (música), Sheldon Harnick (letras), Joseph Stein (libreto) e Jerome Robbins (coreografia original) - que ganha, nos palcos brasileiros, uma versão que, sem qualquer audácia de nossa parte, pode ser declarada definitiva.
Animada por uma história de amor de quase 40 anos com esta obra, comecei a me contorcer de emoção assim que soube que os imbatíveis Charles Möeller e Cláudio Botelho iam montá-la. Sou uma confessa “cria” do filme homônimo de Norman Jewison, de 1971, ao qual fui apresentada por um velho e querido amigo, Jack Micaleff, um engenheiro da Du Pont norte-americana que conheci na fábrica onde trabalhava na época. Quanto mais Jack me contava, mais eu curtia. Era um tempo em que os filmes americanos demoravam a chegar aqui, mas esperei com toda paciência até o dia em que pude assisti-lo, em Volta Redonda, na companhia de meu pai.
Quando finalmente entrei no Teatro Oi Casa Grande para assistir à peça, no último dia 11 – o que, do ponto de vista da minha monumental expectativa, pareceu ter demorado alguns séculos -, foi para viver esse grande amor de uma forma totalmente nova e avassaladora. Todas as recordações que serviram de ponte até aquele momento foram esmaecidas pelo vigor artístico, pela beleza e pela força incrível do nosso primoroso elenco, pela cenografia, pela performance musical perfeita. Não deu tempo nem para respirar; tudo acontecia ali na minha frente - e eu, sem acreditar, sentia-me no palco, uma figurante amorosa a pulsar no ritmo da cena, parte e personagem de um universo tão familiar, agora materializado com inesgotável magia.
Primeiro, José Mayer. Que custei a “ver” na pele de Tevye, devo confessar, mas a quem não conseguiria resistir nem por um instante, desde a primeira fala. E que demoliu completamente o Topol que vivia em mim com sua ternura e drama, com a inocência com que enuncia as contradições e o bom-humor do simples e humano leiteiro Tevye, que fala com Deus com a naturalidade típica dos puros de coração. O Tevye de José Mayer emociona, envolve, é engraçado (aliás, muito engraçado!) ... Há que tomar fôlego e respirar fundo para conseguir lidar com todo esse acervo de surpresas, todas gratíssimas, contidas num único José Mayer. Talvez Tevye seja de fato – como o próprio ator disse, em um dos making-ofs disponíveis no YouTube – o melhor papel da sua vida. Reconhecer e desvendar essas nuances em um grande ator brasileiro, tão intenso e original na encarnação de um personagem clássico, foi uma emoção enorme.
Acho que se alguém se dispuser a procurar, com uma lupa bem grande, um defeitinho – por menor que seja! – na produção de Um violinista no telhado, vai se dar mal de verdade. Não vai achar de jeito nenhum! Tudo está no lugar, cada precioso detalhe foi aproveitado, acarinhado, concretizado. Lembrei-me, enquanto assistia, que Bárbara Heliodora não se cansou de repetir, em sua crítica no Globo, palavras como “impecável”, “sensacional”, “extraordinário”. Pudera! Como encontrar palavras novas para qualificar toda aquela perfeição? A tradução de diálogos e letras de canções é simplesmente obra de gênio; as soluções encontradas por Charles Möeller são excepcionais, mesmo nos contornos mais espinhosos para casar letra e música. A interpretação dos músicos, sob a regência de Marcelo Castro, é não só respeitosa como cheia de vida, ágil e colorida. Destaque, sem dúvida alguma, para os solos da violinista Taís Soares e do clarinetista Whatson Cardozo, que sublinham momentos inesquecíveis, tanto na introdução do espetáculo como na dança do casamento.
A gama de cores escolhida a dedo para os figurinos (Marcelo Pies) e para a ambientação e cenografia (Rogério Falcão) nos remete ao tempo único de Anatevka, mítica cidade russa que se parece com tantas outras que, abandonadas à força pelos habitantes, por obra e graça da intolerância, permaneceram presentes na alma de quem foi obrigado a deixá-las e buscar nova vida em algum outro lugar. Como o Brasil, por sinal, que soube acolher e integrar tantas famílias, ajudar a curar tantas dores e a cultivar novas esperanças. Assim foi, por exemplo, com a família de Soraya Ravenle - que, cristalina como sempre, brilha intensamente como Golde, a cara-metade do leiteiro Tevye. No vídeo do making-of, a atriz confessa que, quase instintivamente, foi percebendo detalhes da mãe, da avó e de tantas outras mulheres importantes em sua vida, impregnados na composição da personagem. Uma Soraya com o mesmo talento, mas bem diferente daquela que conhecemos de tantos musicais, se impõe pela fibra feminina de Golde, sempre pronta a enfrentar o que for necessário para garantir o bem-estar de sua família. E, naturalmente, pela linda voz. Um detalhe tocante imprime ainda mais verdade à matriarca: Chava, a terceira das cinco filhas, é vivida por Júlia Bernat, filha real de Soraya. Vê-las juntas em cena me lembrou um verso de Drummond que adoro, do poema Resíduo: “... fica um pouco do teu queixo no queixo de tua filha...” No caso de Soraya e Júlia, a máxima drummoniana se aplica muito bem aos olhos, ao “jeito” – e sobretudo ao talento, tão pródigo nas duas.
Um violinista no telhado toca em cordas que vão muito além do violino intermitente ou do leitmotiv israelita que marca sua trilha. O mundo ideal das pequenas aldeias, a tradição vivida à risca, a noção de riqueza evocada pelo leiteiro na inesquecível canção Ah, se eu fosse rico!..., medida pela quantidade de galinhas e patos no quintal, nos falam de coisas que ultrapassam em muito os costumes judaicos, que a obra tem o mérito inegável de apresentar ao mundo com beleza e respeito. Tão atuais na Rússia do final do século 19 como hoje, em muitas partes do mundo, os dilemas de quem vê sua vida sacudida pelo medo e pela intransigência em suas várias vertentes – intolerância religiosa, xenofobia, homofobia e muitas mais – são os mesmos: escolher entre transcender a dor e a revolta ou ceder a elas e aumentar ainda mais a pressão. A memória de Anatevka e a força de resistir, exemplificadas por personagens como Hodel, que enfrenta a Sibéria gelada para salvar seu amado Perchik, ou Chava, que rompe a tradição dos casamentos interraciais mas expressa corajosamente o seu amor pela família, nos colocam diante de antigas questões que, apesar das roupas novas da atualidade, permanecem essenciais. Que escolhas devemos fazer, num mundo em transformação? E de que modo a arte, em sua beleza e transcendência, nos convida a empreender essa busca?
Mas tudo isso só nos vem depois que a festa de cores, vozes, canções, delicadeza e interpretação, sutileza e profissionalismo, alegria, tristeza, espanto e música nos toma de assalto e nos leva a sonhar, delirar, rir e chorar como se Anatevka fosse o nosso lar e a Broadway, transmutada definitivamente no Brasil dos musicais, tivesse se mudado de vez – e em português! – para o palco do Oi Casa Grande.
Um comentário:
Muito interessante, Maurette. Gostaria de assistir... quem sabe brevemente????? ;-)
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