sábado, junho 04, 2011

Da frágil e fascinante matéria humana

As protagonistas de Lado B:
Laura Prochet, Mônica Barbosa, Bettina Dalcanale e Karen Mesquita
Foto: Bruno Veiga (divulgação)

Os atropelos de uma estreia, o corre-corre para limpar o palco, acertar som e luz, a euforia exagerada pra tentar disfarçar aquele nervoso que percorre o estômago de todo mundo na reta final, hora de apelar para o santo de devoção, orixá, Fraternidade Branca ou o que mais houver – tudo junto e misturado e justamente na hora que o público se acotovela para entrar no teatro. É esse inesperado e adorável mix de situações e reações que faz de Lado B uma delícia de espetáculo.

Para o diretor João Wlamir, uma comédia dançada. Para o público, uma festa. Para os corações atentos, um verdadeiro espelho para o humano e suas contradições. Todo mundo ri, chora, perde o controle. Todo mundo tem um “lado B” que explode nas mais variadas circunstâncias. E vê-lo no palco é mais ou menos como vivê-lo. Encenando com os elementos do mundo que melhor conhece – o ambiente da dança – o diretor condensa em quatro personagens alguns dos atributos dos sete pecados capitais nos quais se inspirou, sem jamais perder de vista o bom-humor e o traço real dessas “virtudes”, assim como suas consequências.

Laura Prochet, Bettina Dalcanale, Karen Mesquita e Mônica Barbosa, todas bailarinas na pele de atrizes, transitam muito bem na fronteira da dança teatral e revelam excelentes interpretações, vozes colocadas, maturidade. O multifacetado Manoel Francisco cria uma inacreditável Madame Tchersvásky, mâitre de ballet de indecifrável origem, personalidade recheada com a memória de algumas mestras que fizeram (e ainda fazem) história na dança brasileira e de um autêntico repertório de gags que nos remete aos tempos não vividos do melhor teatro de revista. Elegantérrima em seu vestido preto e branco, meias e sapatos pretos, uma torsade à la anos 60 na cabeça e um colar de pérolas no melhor estilo Bonequinha de Luxo, Madame Tchervásky muitas vezes rouba a cena e cria momentos que só mesmo vendo para crer. Contar seria muito pouco para ela.

De saída, todas as bailarinas verbalizam seu estilo, temperamento, ambições. As tensões, picuinhas, diferenças, as pequenas traições e conchavos do dia a dia estão todas em cena, num tom marcadamente bem-humorado e, creio, propositalmente caricatural em alguns momentos. A trama de bastidor desenvolvida por João Wlamir mergulha em crescente profundidade no dia-a-dia da vida de bailarina. E, pelo caminho, toca em cordas sensíveis dentro de quem pertence a esse mundo – e até de quem o viveu apenas por aproximação. A ansiedade de esperar pela tabela e ver quem pegou os melhores papeis, as vitórias e derrotas estampadas no rosto, marcadas no corpo e no gesto. Não faltou nada; nem futricas, nem brigas, nem panelinhas. Nem mesmo momentos poéticos, como quando o assistente de palco, que possivelmente sonha dançar um dia, contempla hipnotizado os trajes das divas, posicionados em suas marcas no chão. A cena, protagonizada pelo jovem bailarino John Lennon da Silva, deixou na beira do palco a marca e a delicadeza de um Marcel Marceau sem máscara.

Os contrapontos divertidos que João habilmente inseriu nos momentos certos também não decepcionaram: o McArthur Park em versão Donna Summer, com direito a figurinos ultrabrilhantes no melhor estilo discothèque, invade a cena – e, curiosamente, saído do iPod da bailarina mais jovem. Ah, a doce bagunça no nosso coração... De repente, bailarinos e atores pescam coadjuvantes na plateia e o palco explode em disco dance.

Do escuro fundo, a voz oculta do diretor pontua a cena, traduz o essencial para a platéia leiga, faz rir, faz calar. Quando enfim se dá o esperado ensaio, outras vozes numa mesma voz inconfundível, a da atriz Cláudia Raia, desnudam o íntimo de cada uma. E o drama domina a cena. O que está dentro vem para o corpo e dá voz de comando. É salve-se quem puder – e, como tantas vezes na vida, nessa e em tantas outras profissões, nem tudo corre conforme cada uma espera. Alguém perde - e, na perda, emociona. O interlúdio final, protagonizado por Laura Prochet, leva-nos todos juntos a um frágil e sentido limite. A atriz que sai do fundo da bela bailarina, nesse momento, é um susto de maturidade, criação, profundidade. De jogar a gente literalmente no chão.

Súbito, do contra-luz que se forma entre a linha do palco, o espelho no fundo e os rostos marcados de dor, emerge a realidade de um sonho: o assistente de palco cria coragem para surpreender. Foi o momento escolhido a dedo por João Wlamir para o solo que John Lennon da Silva criou para A morte do cisne, e que tem emocionado muita gente na internet.

Sim, eu já tinha visto... mas qual. Nada se compara à tessitura desse momento, à força de receber assim, de peito aberto e por inteiro, a criação de John Lennon da Silva, seus movimentos perfeitos num corpo totalmente intuitivo, totalmente talhado para dançar de uma forma que mestre algum poderia ensinar. Senti todos os músculos e sentidos tremerem diante de tanta sincronia, domínio absoluto, pureza... Quanto mais se vê, mais longe se enxerga e para mais longe ainda é possível viajar, compreendendo os milagres de harmonia com os quais o Universo unge alguns poucos eleitos, como John Lennon da Silva. Nas letras desse nome pairam outras letras, outras palavras, quem sabe a sensação de imaginar que no não haja céu ou inferno, nem fronteiras entre países, razões para morrer ou viver, fome ou cobiça no mundo, mas apenas a capacidade de sonhar, acreditar e realizar. Esta, sim, que John Lennon da Silva leva ao pé da letra com seu talento - e que João Wlamir, com tanta sinceridade, oferece ao público, no encerramento encantado dessa obra tão delicada e contundente que é Lado B.

9 comentários:

joao disse...

como é bom criar e ver depois o trabalho exaustivo ser recompensado por todo esse"compreender-sensivel"de uma pessoa que tem o dominio de materializar em palavras tudo aquilo que queriamos dizer...vc foi no ponto exato ,agudo e direto...é ISSO!ou tudo isso...
fico imensamente feliz e emocionado de estar cumprindo meu ato de viver plenamente no mundo e cumprir minha função de ,humildemente,como artista,regar os sentimentos humanos e aproximar mundos...obrigado pelo belo sentimento humano que soube tao bem captar o nosso trabalho...
salve!!!
bjos
joao wlamir

joao disse...

como é bom criar e ver depois o trabalho exaustivo ser recompensado por todo esse"compreender-sensivel"de uma pessoa que tem o dominio de materializar em palavras tudo aquilo que queriamos dizer...vc foi no ponto exato ,agudo e direto...é ISSO!ou tudo isso...
fico imensamente feliz e emocionado de estar cumprindo meu ato de viver plenamente no mundo e cumprir minha função de ,humildemente,como artista,regar os sentimentos humanos e aproximar mundos...obrigado pelo belo sentimento humano que soube tao bem captar o nosso trabalho...
salve!!!
bjos
joao wlamir

Anônimo disse...

Faço minhas as palavras do João...vc entendeu,sentiu...TUDO!!!! Esta é a maior recompensa para nós artistas!!!
Obrigada pelas lindas palavras!!!!
Laura Prochet

Anônimo disse...

Faço minhas as palavras do João...vc entendeu,sentiu...TUDO!!!! Esta é a maior recompensa para nós artistas!!!
Obrigada pelas lindas palavras!!!!
Laura Prochet

guicorreia disse...

Fala sério, com este texto me arrependo de não ter assistido.

Mas mesmo assim, parabéns a todos!

LILIVIU disse...

Gargalhei.me diverti,me emocionei e amei essa brincadeira toda com um fundo verdadero,sensível e criativo.
Sentimentos profundos que nós que vivemos nesse mundo fizeram que refletíssimos nossas vidas num passado não tão distante.
Precisamos trazer a tona todos esses momentos que alegres ou tristes fizeram e fazem parte de nossas vidas!!
Parabéns João pela alegria e sensibilidade que atravéz dessa equipe nos encheu de alegrias!!!
Eliane Montenegro

Eliane disse...

Gargalhei.me diverti,me emocionei e amei essa brincadeira toda com um fundo verdadero,sensível e criativo.
Sentimentos profundos que nós que vivemos nesse mundo fizeram que refletíssimos nossas vidas num passado não tão distante.
Precisamos trazer a tona todos esses momentos que alegres ou tristes fizeram e fazem parte de nossas vidas!!
Parabéns João pela alegria e sensibilidade que atravéz dessa equipe nos encheu de alegrias!!!
Eliane Montenegro

Anônimo disse...

Não tem a ver com o teu post mas lembrei-me de passar por aqui e ao passar e ler-te apeteceu-me também contar-te de uma peça que anda por aqui "a lua de Maria Sem", com uma actriz, Maria João Luis e uma cantora Manuela Azevedo, lindíssimo... apenas porque me apeteceu contar-te

"Em todas as casas há uma vela apagada e um santo atrás da porta.

Hoje, não sei por que artes, o santo está em cima da cómoda

com a vela acesa ao lado.


Que gotas são essas que dedilhas, minha mãe? Parecem lágrimas de vidro

rematadas por um Cristo...

Porque falas com elas em voz baixa, minha mãe? E porque acendeste a vela

do quarto? O candeeirinho da mesinha avariou-se? O pai pode arranjá-lo!

Ele é homem para isso e muito mais...

Mas, porque dorme o pai a estas horas, minha mãe? Porque dorme só na cama?


Tenho medo do escuro e o taramelar da vela faz sombras do fim do mundo

na parede...

Quem está no quarto com o pai, minha mãe?

Tu não paras de contar essa fiada redonda de lágrimas... e o pai dorme

entre sombras que me assustam."

http://www.youtube.com/watch?v=wuzReMZJw1E


in A Lua de Maria Sem

Anônimo disse...

A entrevista a propósito da peça

http://www.youtube.com/watch?v=3gOwFpInbkw&feature=related