Homenagem ao poeta paraense Bruno de Menezes
Foto: Maurette Brandt
A Amazônia dança em minha vida pelas graças de Belém do Pará, cidade pródiga, o seu cheiro quente de vento cortado à tarde pela chuva rápida, generosa. Há muitas calçadas de pedra que, molhadas, escorregam. Mas a chuva de cada dia logo seca, e doce calor embalado pela brisa nos acompanha pelas avenidas largas, da Basílica à Praça da República quase em linha reta. O movimento é grande, a gente, em geral, tranqüila. Conversar é um vício, o paraense justifica a existência do termo boa-praça. E a gente vai andando e vai conhecendo gente, fazendo amigos instantâneos porém verdadeiros dentro da sua instantaneidade. E há as mangas, por toda parte as mangueiras frondosas, exuberantes, amazônicas a seu modo. Fala-se em acidentes, alguém jura que uma pessoa foi parar no hospital com uma “mangada” na cabeça... Ninguém se protege como deve, e a vida convive com as frutas.
Tem muita arte no sangue das ruas, em cada bar há uma linda voz pendurada para secar, um violão, às vezes uma percussão. O talento abençoou esse povo desde sempre. Vê-se no rosto da cidade a linha de um verso, um traço arquitetônico de beleza, um estribilho de canção perdido na pauta do dia. Só Belém tem a mais linda Estação das Docas decorada com os guindastes da antiga estiva, sobraçando o rio Gualmar, igual-ao-mar, uma correnteza barreada de vida, precisa esforço para enxergar os verdes lá da outra margem. Só no galpão dos restaurantes há uma ponte rolante que insistiu em continuar funcionando – e virou palco para a música da terra, que corre de cabo a rabo acima das cabeças, acima do bem e do mal, espalhando felicidade.
Este ano, o meu quinto na cidade por obra e graça do Festival Internacional de Dança da Amazônia, o porto de arte pelo qual atraquei em Belém, ganhei uma medalhinha da Senhora de Nazaré na porta da Igreja. Para mim, um sinal, um batismo de fé. Acho que a famosa Nazinha, como o povo a chama carinhosamente, quis dizer que, de algum modo, já faço parte dali.
Belém combina perfeitamente com a idéia de um festival internacional de dança. E a Clara Pinto – que foi quem inventou toda essa história – sabia muito bem disso desde o início. Já lá vão quatorze anos desde o primeiro; eu cheguei no décimo, mas consigo traçar essa memória a partir dos pequenos detalhes.
Clara Pinto é uma instituição na cultura paraense. Bailarina, Miss Pará, professora de dança e coreógrafa são alguns aspectos pontuais de uma trajetória brilhante como empresária e defensora da arte e da cultura. Há cinco anos testemunho sua dedicação e a capacidade de trabalhar com uma equipe que funciona quase sem palavras. Plantou-se um espírito – e este tem dado frutos bem consistentes.
Durante o FIDA, professores e administradores assumem a produção. E cada um sabe perfeitamente o que deve fazer para que tudo funcione impecavelmente, sem que se perca o sabor da camaradagem, tão mais humano e caloroso do que atravessar um exército de frias regras e minutos contados.
O Festival Internacional de Dança da Amazônia tem sido, para mim, um aprendizado importante sobre a forma de o norte do país viver a dança. No palco do Teatro da Paz, talvez a mais forte das paixões que me ligam a Belém, tenho caminhado com os grupos locais e de outras cidades como São Luís, Macapá, Tucuruí, Fortaleza, Barcarena. Em cinco anos houve crescimento, sobretudo no aspecto da valorização do que brota da própria cultura amazônica e é transportado para os movimentos da dança. O formato do festival é democrático; permite que os participantes concorram ou simplesmente dancem pelo prazer de dançar. Nas asas dessa liberdade descobrem-se coisas incríveis, como o grupo de dança indiana Nataraja, ausência sentida este ano, uma verdadeira jóia.
O importante, no FIDA, é a oferta de referências novas, seja através das oficinas com professores sempre atualizados, seja a partir do trabalho dos artistas convidados. Quem quer se aperfeiçoar, portanto, sempre encontra um caminho.
Nos espetáculos, gosto de me sentar na varanda. Não, por favor, não me entendam mal: varanda, no Teatro da Paz, não é o mesmo que a varanda da nossa casa. A varanda é o principal espaço do teatro, onde as cadeiras são dispostas horizontalmente bem de frente para o palco e ligeiramente elevadas. A platéia fica embaixo, na altura do fosso; as frisas, como em qualquer teatro, estão nas laterais. A melhor visão frontal é, portanto, a da varanda. Dali acompanho, apreensiva, as apresentações dos grandes amigos e, com permanente curiosidade, o trabalho dos artistas novos no festival. Vale o destaque, este ano, para a dupla argentina Natalia Pelayo e Federico Fernandez, que deu um show no clássico e no contemporâneo. E também para Ellington Gomes, um dos mais perfeitos bailarinos desse tempo recente, que faz parte do corpo de baile do Municipal do Rio e este ano fez par com a já veterana Cláudia Motta, uma das primeiras-bailarinas do Theatro Municipal.
Mas uma coisa que me encanta é a azáfama de centenas de bailarinos pelos corredores do teatro milenar. As escadarias com seu décor em bronze e balaustradas polidas só fazem rir, em sua sabedoria; as estátuas fazem troça. Os lustres de ferro e cristal só aceitam ser apagados ao som da Protofonia do Guarany. E os espelhos se comprazem em cultivar o seu dom de iludir. No fundo, protegem os pequenos e grandes artistas com o seu manto de tradição e leveza, desejando que sejam felizes no palco, no seu palco, assim como na vida.
Sou mesmo uma pessoa chegada a rituais. Ao aproximar-se o final de outubro, todos os anos, começo a entrar no ritmo dos rituais do FIDA: a chegada a Belém, o carinho do Waldir, da Ana Clara e da Lorena, o reencontro com o amigo e vizinho Fábio de Mello, o imensamente talentoso coreógrafo que dirige o Festival e me carregou pra Belém há cinco anos, e com Fred Salim, bailarino, coreógrafo e meu par constante na cidade desde 2003... São muitas pessoas, detalhes, instâncias que são vividas com imensa alegria a cada ano. Como a apresentação dos grupos folclóricos, na tarde-noite de sábado, uma emoção renovada, apesar de a popularização da chapinha ter feito um estrago nas charmosas dançarinas de carimbó e síriá. Fica o protesto, em prol dos belos cachos naturais injustiçados.
O FIDA, para mim, traduz-se em pessoas como Edna e Eliana, as super-produtoras, incansáveis em cuidar da logística e da infra-estrutura. Lenita e Jussara, revezando-se entre a Escola e o Teatro da Paz; Graça, no subcomando geral, resolvendo tudo com a classe e a fleuma que lhe são peculiares. Elade, a nova secretária, muito simpática e presente. Rosana, Paula, Tereza, Therezinha e muitas mais, coordenando som, luz, ensaios e os outros vários palcos do Festival – Iguatemi, Teatro Margarida Schivazzapa, Pólo São José Liberto e Praça da República, este no domingo final. E fechando o circuito, Clara Pinto com olhos de lince e um cuidado enorme com o processo inteiro.
Não é à-toa que Ana Botafogo e Carlinhos de Jesus, por exemplo, adoram estar lá todos os anos. No FIDA, quem chega entra logo para a “família” e só quer saber se, no ano que vem, vai voltar para os braços de Belém, nas asas da dança e para o seio de um trabalho que, sem dúvida alguma, é referência na Região Norte do país.
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